segunda-feira, 25 de abril de 2022

Liberdade

 

A tua mais irremediável prisão é essa corda que te sai do músculo do coração e junta os pés com as mãos e faz de ti uma pequena trouxa humana no fundo de um velho barco à deriva.

Até já, Ludovico.


 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Breve ensaio sobre a irrelevância do amanhã

Um desses dias do deserto, Tagik, o berbere contador de estórias, no círculo da fogueira que definhava ao vento, aproximou os lábios gretados dos meus ouvidos, e disse-me que todos os amanhãs são uma réplica do dia de hoje. Naqueles dias, como se diz na Bíblia, entre tendas de panos egípcios, chás de menta adocicados com vodka e a falsa promessa de eternidade que há no amanhecer do deserto, não percebi a ameaça contida na premonição.
Hoje, sitiada nesta selva urbana, longe do meu navio, despojada das minhas espadas, exilada no mundo real, percebo na sua plenitude o horror da afirmação. 

sábado, 2 de abril de 2022

A Lua de Ariosto

Ariosto já resolvera, afinal, um dos  mistérios da existência que mais me intrigaram. Onde fica o cemitério dos amores perdidos? Na lua, claro. Nas montanhas da lua encontram-se todas as coisas que na terra nos escorreram pelos dedos das mãos e se perderam para sempre nas faldas do tempo. 
Posso até imaginar, enterrado nas areias de um deserto lunar, um contentor com tampa de jade e a inscrição do meu nome. 
E lá dentro: 
A breve memória de um olhar que perdi na alba; centenas de brincos sem par; dois anéis importantes; muitas horas de paciência; uma larga porção de tempo; duas ou três amizades que estavam destinadas a ser para a vida; vinte e cinco contos originais; a boneca Carole, há tantas luas ida que já nem sei se é perda própria; um lenço caído no chão da Bretanha; o conteúdo integral de tantos livros que esqueci; uma Ilha inteira, com as suas pessoas e casas e cheiros e luz. O juízo de alguns dias. 
Dois amores, de grande calibre.
E tu? O que tem a lua de teu? 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Onde vão parar as coisas que perdem na terra?

No universo nunca se perde nada. Onde vão parar as coisas que se perdem na terra? À lua. Nos seus vales brancos encontram-se a fama, que não resiste ao tempo, as orações feitas de má fé, as lágrimas e os suspiros dos amantes, o tempo desperdiçado pelos brincalhões. E é la que se conserva, em ampolas seladas, o tino de quem o perdeu, no todo ou em parte. 

Orlando Furioso de Ludovico Ariosto contado por Italo Calvino, Cavalo de Ferro

Silêncios



sábado, 26 de março de 2022

Equinócio

Esta manhã o rio ia cheio no seu leito e já havia magnólias nos canteiros da margem e a brisa fresca cheirava a jasmim. 
Não vi o bando dos corvos marinhos que, suspeito, partiu para outras bandas. Mas vi os patos e as gaivotas e aquilo que me foi dito serem gansos selvagens e é claro que o equinócio, finalmente, levantou-se sobre as todas as criaturas do rio.
Eu também sou uma criatura do rio. Refugiada do mar, estendo as asas nas águas do rio, limpo nelas as minhas escamas e alimento-me da sua vida. 
E também agradeço o equinócio.

quinta-feira, 24 de março de 2022

os anjos não tocam violino

O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.

E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.

Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.

Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.

Depressa, depressa.

Era um crime.

Os anjos não tocam violino.

(...)

In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.

Bohème

E ali estávamos nós de novo na plateia do São Carlos, eu enterrada num vison comprado em segunda mão e roída pela fome, Mimi, já gelada e tuberculosa, a destilar as últimas gotas da sua paixão, Rodolfo a banhar-se na mais comovente onda de negação e outra vez o mesmo pensamento, aquele que sempre me assalta nestes momentos de extrema tragédia: mas porque é que na ópera as pessoas demoram tanto tempo a morrer? 

quarta-feira, 23 de março de 2022

breve síntese dos dias que não contei

Ainda me impressiona a chuva triste que se cola às costas das mãos e que não se consegue sacudir com um gesto impaciente. 

Ainda me assusta o olhar delator dos loucos quando se cruza com o meu e reage com a efusão de quem encontra um amigo num mercado chinês.

Ainda detesto a nostalgia do pôr-do-sol e das flores que murcham nas jarras e do musgo nas lápides sob a última luz da tarde.

Ainda sonho que sigo um coelho e me perco no subterrâneo surrealista das coisas bonitas e fascinantes onde Alice e a Rainha de Copas são as duas faces do espelho.

Ainda trago no peito a mancha escura da memória dos dias em que não fui feliz todos os dias.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Contou-me a lua

Contou-me a lua que as sombras amanheceram riso
E dissiparam-se nas bolas de sabão que se elevaram
Na sétima onda do mar

Os peixes sentaram-se na areia
Sob um céu de nuvens rosa 
Para me ensinar a amar

Contou-me a lua que as noites amanheceram dias 
E eternizaram-se nos acordes da guitarra
que se elevaram
na sétima onda do mar

Os nossos pés nus na areia,  
A minha mão  dentro da tua 
Para me ensinares a amar

Contou-me a lua que com a ponta dos dedos 
Desenhaste na minha alma 
Um amor maior que os medos.




quinta-feira, 25 de março de 2021

Funeral Blues




De manhã comprámos margaridas. 
Pela tarde plantámo-las no canteiro grande do jardim. 
À noite morreu Kierkegaard, o cão Pirata.
Morremos de faces encostadas e pata na mão, como se deve morrer no amor e na guerra. 
Morremos ambos, porque uma parte de mim morreu com ele. Talvez a melhor. Os livros nada ensinam sobre o sofrimento que é perder um cão e os amigos distraídos levantam o sobrolho e dizem “mas calma, é só um cão”.
Mas não é só um cão. 
É Kierkegaard, o cão Pirata. Testemunha de significativa parte da minha vida. Companheiro de aventuras. Inimigo do leão que surge no início dos filmes da MGM; do secador de cabelo; do aspirador; dos limpa-parabrisas; da chuva e de todos os jardineiros deste mundo. 
Cão melómano, fã de Puccini e da Madame Butterfly. Ouvinte dedicado das minhas tardes de piano, junto do qual gostava de se deitar, para depois levantar a cabeça em protesto aquando das falhas mais críticas. 
Feroz guarda da porta para onde corria, com as unhas sempre demasiado compridas, a baterem de encontro ao soalho. 
Parceiro de sofá e aquecedor biológico nos dias mais frios. 
Patrão, escravo e amigo. 
Quase de certeza, a minha única relação verdadeiramente desinteressada. 
A casa aumentou de tamanho. 
O silêncio é uma noite contínua.
O meu colo ficou vazio. 
Sou uma mulher-sem-cão.
Morreu Kierkegaard, o cão Pirata! 
Batam em latas ou mandem tocar todos os sinos de todas as igrejas.
 Morreu o meu melhor amigo!

terça-feira, 2 de março de 2021

Dois anos e seis meses

Há exatamente dois anos e seis meses começou a contar-me uma estória que interrompe todas as noites, na hora de dormir. Não há nada mais importante na vida do que um bom contador de estórias. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

E absolvições


Condenações


Carnival

O que me impressionou, ao longo dos seis quilómetros que percorri junto ao rio nesta manhã de carnaval, foi a obliteração dos sonhos. Nenhuma fada, nenhuma rainha, nenhuma princesa, nem sequer uma única bruxa. Nenhum pirata, nenhum super herói, nenhum cowboy, nem sequer um palhaço. Vi uma única criança mascarada. Vestiram-na de velha, retratada na miopia de uns óculos de aros pretos, vestido de flores e colar de pérolas e um manto preto apoiado no respetivo cajado. A única família que passeou uma criança mascarada, encerrou-a num traje de velha deprimida. À falta de flores, borboletas, criaturas mitológicas e salvadores do mundo, ocorreu-me que a magia foi salva do outro lado do espelho. Como na canção do Chico Buarque, haverá talvez, escondido, numa qualquer parte do mundo, um país onde se refugiaram os sonhos. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Das manhãs da normalidade possível

O dia nasceu sob o signo do sol. Parecendo que não, é uma variável relevante. 
Hoje comprei uma couve e uns tomates no mini mercado da esquina e regressei a casa com eles, dentro de uns sacos transparentes, para fazer o almoço. 
Pode haver alguma felicidade nisso de se escolher uns tomates maduros, com rama e tudo, e de os pousar na bancada da cozinha e ficar a pensar que são os tomates ideais para aquilo que queríamos fazer para o almoço. 
Aprendi, entretanto, que a felicidade é mais simples e concreta do que poderíamos imaginar. Já não preciso de encontrar a metáfora perfeita num poema. Uns tomates adequados ao prato têm a mesma aptidão para desencadear no meu cérebro o mecanismo da libertação da serotonina. É uma informação útil. Vidas poderiam ter-se salvo se os seus titulares tivessem aprendido a tirar proveito dos pequenos nadas do universo. Aposto que metade dos suicidas nunca desenvolveu o gosto pela culinária, nem percebeu a energia libertadora que existe entre uma faca e os alimentos crus. 
Depois li uma coisa no Henrique Bento Fialho e lembrei-me do Joe Dassin e passei parte do final da manhã a ouvi-lo na cozinha. 
- E se tu não existisses, pá, porque haveria eu de existir? 
Perguntei ao capitão Strut quando regressou a casa e me surpreendeu na cozinha a esfaquear os tomates do mini mercado. 
O capitão Strut tem o salutar hábito de nunca responder às minhas perguntas estúpidas. Pegou-me na mão e, em silêncio, dançou comigo o resto da música. 
Foi uma boa manhã. 


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Fevereiro

Fevereiro avança 
indiferente aos nossos mortos e moribundos.
A natureza ri-se das dores dos homens 
E dá-lhes, por exemplo, esta inoportuna chuva
de fevereiro.
Os dias não esperam que fechem as feridas dos animais.
Ignoram a ética do luto. 
Caiu fevereiro sobre os nossos mortos e moribundos. 
A chuva assusta as vidraças da janela, 
afoga a papoila que se esforça por nascer,
escorre pela campa do meu último morto e 
enlameia as patas do próximo. 
Há sessenta noites que todos os dias
são regados pela tristeza.
Ensopou o tecido e colou-se aos ossos.
Por vezes, dou por mim a sacudi-los,
no gesto atávico do animal incomodado. 
Se houvesse um raio de sol, 
deitar-me-ia nele,
encostada às paredes da rua, 
com o focinho de encontro ao chão.
Mas não há sol, nem paredes, nem chão.
Só esta chuva triste,
e fevereiro,
e o desrespeito da natureza pelo tempo 
que demoram a sarar, as feridas dos animais.



Hologramas

Fiquei a pensar que talvez  exista 
em todas as imagens, de todas as coisas que compõem o universo e dos seus compositores, um holograma de uma borboleta de asas abertas.
Talvez seja imprescindível encostar o nariz à imagem e afasta-la muito lentamente e fixar o olhar no ponto que é tanto exato quanto irrepetível e misterioso. Perdermo-nos na dose certa de estrabismo, revirar os olhos para dentro, acreditar na existência da borboleta de asas abertas.
É o anti-Aleph. Não o ponto vazio que nos mostra todas as coisas que compõem o universo, mas o ponto cheio que nos mostra o espaço vazio que existe em todas as coisas que compõem o universo. 
Bem sei que o consolo da ideia de uma borboleta de asas abertas no interior das coisas é um holograma. Mas também assim deus e a poesia e ninguém parece especialmente perturbado com isso. 



sábado, 6 de fevereiro de 2021

Confins

Noutros tempos, passei longos dias e ainda mais vastas noites confinada dentro da minha cabeça. O confinamento interior parece-me, de todas as perdas de liberdade, a mais violenta. O cérebro projeta-se, como um hamster histérico, às voltas numa rodinha de plástico. E nós ficamos a girar no interior do brinquedo até que a exaustão nos salve do engodo. Se a loucura não chegar primeiro. 
Para quem foi obrigado a estar fechado dentro da sua própria cabeça, o confinamento sanitário tem a leveza e o arejo de um passeio numa praia vazia. E os tempos de não existência, na sua irrealidade, na sua bizarria, sempre nos trazem o silêncio que pode ser motor de uma qualquer forma de crescimento. 
(pese embora no meu caso, até agora, só o tenha notado nas indesejáveis raízes do cabelo)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

É necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara

Diz Gonçalo M. Tavares, “é necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara”. Antes de nos apagar a cara, a morte escurece-nos o coração. E esse não dispiciendo detalhe, parecendo que não, reforça a urgência da receita. É necessário dançar. É imperioso deixar que a música submeta todos os nossos músculos. Até o do coração. Só a música nos pode salvar. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A morte do pai

O pai morreu
  e ele, que era duro, endureceu mais.
Informou da existência do cadáver 
  como quem relembra um pormenor.
Amava o pai, mas o coração é assim
(a lei da sobrevivência)
   esconde-se quando o querem matar. 

Gonçalo M Tavares, 1, Relógio D’água.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Mar

“Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off - then, I account it high time to get to sea as soon as I can.” 
― Herman Melville, Moby-Dick

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Starry Night

Deixei de viver dentro de um livro de poemas, 
algures entre a segunda e a terceira dança. 
Era difícil, 
no espaço entre dois versos, 
unir as mãos e dançar contigo 
todos os acordes do infinito.
Mas quando se aprende a viver
dentro de um livro de poemas,
Amor,
não se retorna à claustrofobia dos espaços.
Sou a habitante discreta de todas as caixas de magia.
Espreito do interior dos espelhos desta casa
E adormeço dentro dos quadros. 
Às vezes navego no veleiro pendurado sobre o piano 
E outras, muitas, quase todas, 
Amanheço no crepúsculo do Van Gogh
que resgatámos de uma noite de Nova Iorque. 
Ancorada nos teus pés, 
deixei de deambular, sonâmbula, 
sob a lua das praias geladas 
e de me pendurar, pelas sombras,
nos mais escuros telhados de lisboa. 
E são teus os dias, as  noites,
Todos os crepúsculos e todas as albas.
Mas quando não souberes de mim,
Amor, 
procura-me nas coisas inanimadas,
para as quais ainda me arrasta
esta estranha sede de magia.




sábado, 16 de janeiro de 2021

Talvez o fim do mundo

Estão nuas as árvores da minha rua. 
Em tempos houve um gaio na floreira da janela. 
Desapareceu quando o tentei subornar com aveia. 
É manhã de sábado e o mundo parece suspenso na imobilidade. São as minhas manhãs preferidas.
Sentada no chão do escritório, velo a estante sem livros novos e lastimo a minha negligência.
Não tenho mais livros para ler e parece que já os não vendem.
O fim do mundo, penso, deve ser qualquer coisa assim. 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

(Temporary Backup) Minuet in D Minor

Estão vinte e seis graus dentro da sala. 
Deitada na chaise long do sofá, com o cão a ressonar encostado à minha perna esquerda, observo a expressão do meu amor enquanto aprende na guitarra o Minuet in D minor. 
Será a música do novo confinamento. 

Tenho saudades dos meus amigos, de passear no Chiado, dos teatros, de ouvir e ver tocar música ao vivo, de jantar em restaurantes, de comer batatas fritas, de aterrar numa cidade desconhecida. Também tenho saudades de abraçar as pessoas de quem gosto, mas sobre isso escolho não pensar. 
Sei que a minha gaiola é dourada e tem vista para o Tejo. 
Esse que corre indiferente à angústia das margens e ensina a lição que eu preciso aprender. 
Correr indiferente à angústia das margens e agradecer o Minuet in D minor; estes vinte e seis graus e os dedos do meu amor na guitarra.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Medicamentos do coração

Sofri suficientes desgostos de amor para conhecer de cor cada um dos degraus de pedra de que são feitas as minhas escadas de Kubler-Ross. São altas e retorcidas. Enquanto rastejava por elas, acima ou abaixo, consoante a época do ano, a incidência da luz e os períodos de recessão ou progressão, tive oportunidade de aprender o equivalente a todo um curso superior de geologia. 
Sei muitas coisas sobre corações partidos e ainda mais coisas sobre a alquimia das substâncias que compõem a cola capaz de os endireitar. Experimentei a hiperatividade; a inércia; o áudiolivro do Melville e a sua baleia branca; todos os Jane Austen; a tradução de poemas ingleses; o estudo dos árabes; as festas e a eremitagem. Nunca acreditei no poder curativo do amor, talvez por, antes, ter sido esse mesmo a fonte da doença e eu saber há muitos anos que o que é parte do problema jamais pode ser parte da solução.
Finalmente, tive o meu primeiro desgosto que não foi de amor. Aprendi que quando não é de amor, é só de dor. Tudo o mais é basicamente igual, pois a infelicidade é monocromaticamente aborrecida e as lágrimas sabem sempre ao mesmo. 
Quando o desgosto não é de amor, sei-o agora, o amor é cura e antídoto. 
Passei os últimos dias embrulhada no silêncio da natureza e nos braços do meu amor, com o tempo suspenso na lenta espera da cicatrização dos tecidos. 
O amor, fiquem sabendo, é um corticóide de ação rápida. 

How much do you love me

 


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Dia 30 do mês de Dezembro do Ano da Peste

Por fim, fui vencida a fazer as malas para terminar em pleno campo os dias do inominável ano. 
Que as cidades estão cheias de peste; que os teatros estão vazios; que as pessoas já não podem tocar nos copos umas das outras e desejar dias melhores; que irá chover a semana inteira; que há filas para tudo; que no campo as cores de início de inverno; que os vermelhos e os laranjas; que o cheiro das lareiras e a beleza do orvalho nos pastos; que os épicos passeios pelas ecovias; que as vantagens da adega e os sabores do Minho.
Enfim...
Cá estou. Vinte e quatro horas depois, entre os caprichos de um  aquecimento central que talvez exista ou não e o ártico que também decidiu mudar-se para cá,  ainda não consegui despir o casaco da neve e descalçar as botas. Penso que já nem sequer tenho nariz, mas tenho medo de ir ao espelho confirmar. O dedo mínimo da mão esquerda passou de encarnado a preto e também ameaça cair. O que me assola nem é tanto o medo de que a hipotermia me impeça de chegar a um ano decente. É mesmo a tristeza de morrer no meio do campo. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Kierkegaard, o cão Pirata

Kierkegaard, o cão Pirata, está velho.
Era um bebé de seis semanas quando o ofereci a mim própria de presente de Natal e o levei para todo o lado dentro dos casacos de inverno, como se fosse uma exarpe fancy. Depois cresceu e deixou de me caber no colo. Quando decidi ir para Pirata, fiz uma grande fogueira no pátio e queimei todos os livros, todos os vestidos e todos os sapatos. Quando embarquei no Aleph e soltei amarras na direção do crime, da liberdade e das Caraíbas, o único acessório que levei comigo foi kierkegaard e a sua coleira de marca. E uma chaise long de design. E alguns cristais. E um talher de prata. E uma toalha bordada. E umas iCenas, algumas das quais com as versões digitais dos livros que queimei. E os shampoos da Kiel’s. E um secador de cabelo. E umas sombras da Chanel e aquele verniz da moça do Pulp Fiction. ... mas voltando ao ponto, o único acessório que levei comigo - com exceção de todos os outros - foi Kierkegaard, o cão Pirata. Vivemos juntos a experiência do crime, do mar, da liberdade. Quando pelo amor traí o mar - as pessoas dizem escolher, mas todas as escolhas sérias são traições - abandonei o Aleph com a roupa do corpo e Kierkegaard, o cão Pirata, pela trela de marca. 
O cão foi o que primeiro se habituou à vida na terra. Ainda eu suspirava pelo sabor da lâmina da espada e pelo cheiro do sangue salgado, já o cão se aburguesara a jardins de magnólias, sofás finos e mantas de pura lã virgem. Vendeu-se por biscoitos gourmet e esqueceu o cesto da gávea nos pés do novo dono, a quem quis, à semelhança da sua dona, como nunca antes tinha querido a ninguém.
Kierkegaard, o cão Pirata, está velho. Dorme a maior parte do dia, rendeu-se à DogTv, só aceita comer patê gourmet servido em pratos dourados, ergue as orelhas ao assobio do seu dono do coração e quando o sonho o abana, eu sei, é nos macios relvados em que esfrega os costados que está a pensar. 
Kierkegaard, o cão Pirata, essa última testemunha da minha vida de liberdade e aventura já esqueceu os tempos em que mordia as ondas. 
Não o censuro. O sabor do Lindt de laranja também já me fez esquecer o gosto da espada nos dentes. 

sábado, 26 de dezembro de 2020

Tango caliente

Quebradas as amarras e a pequena campanula de cristal, a bailarina dança livre sobre a caixa das jóias. Tchaikovsky não previu isto. Os brilhantes que se soltam do cabelo de nylon espalham-se pelo mogno da base ao ritmo em que o cisne negro mergulha na sua profunda loucura branca. 
A bailarina já não gira aprisionada numa caixa de música. Fez do tampo o seu palco e dança e dança e dança até gastar os sapatinhos de plástico prateados. 
Sobre ela há de cair a noite de hoje e mil e uma outras. A bailarina dobra-se, por vício ou reflexo condicionado, na vénia à plateia imaginária. Ninguém bate palmas. A bailarina ainda não sabe. Mas, liberta, já dança sozinha para essa outra figura que a espera, do outro lado do espelho da caixa de música. 

2020

Foi o melhor e o pior ano da minha vida. 
Conheci os limites da alegria e da tristeza. 
Ganhei o meu marido, perdi o meu pai.
(Foi a primeira vez que consegui dizer qualquer um dos dois)
O Natal teve uma árvore verdadeira. A árvore da vida. Essa, sob a qual se passa tudo o que há milhões de anos se passa na estória dos homens. Já as luzes, meus amigos, as luzes são sempre a pilhas. O que nos ilumina esgota-se ao ritmo determinado por um qualquer fabricante que, apenas por sorte, pelo menos, não será chinês. 
Hoje há música na sala. Este ano aprendi que é preciso dançar enquanto há música na sala. Kierkegaard não nos ensina isso. Os russos também não. Podemos ler muitas bibliotecas e deixar assentar os sedimentos de qualquer coisa. Mas é preciso ganhar um marido e perder um pai para perceber isto: é preciso dançar enquanto há música na sala. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Noite

 Às vezes o peso da noite acorda-me no estremecimento de não saber onde tenho a espada. Entreguei-a há tanto tempo que devo ter esquecido onde a guardaram. Todos os armistícios têm o preço do desarmamento. E acordada não me queixo. Paguei pelo amor infinitamente menos do que vale. Pagaria, a cada dia, cem vezes mais. 

Porém, o sono faz-me ingrata. Sinto na jugular as ondas do velho mar e julgo que é do sal o que afinal é cheiro de terra. Ferve-me o sangue na memória da batalha. Peso a lâmina que me comanda o pulso. Todos os espelhos da casa refletem na alma a sombra que o dia não vê.
Depois acordo e tudo é paz, calor e terra e um rio na janela. 
E abraço-me com força à manhã. Para que a outra, que também sou, não me leve com ela.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Nós


 Todas as gerações e os poentes.

Os dias e nenhum foi o primeiro.

A frescura da água na garganta

De Adão. O ordenado Paraíso.

O olho decifrando a maior treva.

O amor dos lobos ao raiar da alba.

A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.

A Torre de Babel e a soberba.

A lua que os Caldeus observaram.

As areias inúmeras do Ganges.

Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.

As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.

Os passos do errante labirinto.

O infinito linho de Penélope.

O tempo circular, o dos estóicos.

A moeda na boca de quem morre.

O peso de uma espada na balança.

Cada vã gota de água na clepsidra.

As águias e os fastos, as legiões.

Na manhã de Farsália Júlio César.

A penumbra das cruzes sobre a terra.

O xadrez e a álgebra dos Persas.

Os vestígios das longas migrações.

A conquista de reinos pela espada.

A bússola incessante. O mar aberto.

O eco do relógio na memória.

O rei que pelo gume é justiçado.

O incalculável pó que foi exércitos.

A voz do rouxinol da Dinamarca.

A escrupulosa linha do calígrafo.

O rosto do suicida visto ao espelho.

O ás do batoteiro. O ávido ouro.

As formas de uma nuvem no deserto.

Cada arabesco do caleidoscópio.

Cada remorso e também cada lágrima.

Foram precisas todas essas coisas

Para que um dia as nossas mãos se unissem.


In Jorge Luis Borges, As Causas

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

sábado, 17 de outubro de 2020

Enquanto houver dálias ao sábado...

 Dizem-me que no mundo, na europa, no país, em Lisboa, na minha freguesia, há ameaças, vírus e políticos, internamentos, doentes, mortos, aplicações e máscaras. Não sei nada sobre essas coisas. 

Ontem, a maré foi das grandes e o rio ia cheio e espelhado pela falta do vento. Hoje amanheci entre o sol e os braços do meu amor. Comprei dálias no mercado biológico aqui ao lado e demorei-me, ao som do jazz, a dispô-las na jarra. 

Se escolheres bem e tiveres muita sorte e tiveres vivido muito tempo dentro de um poema, pensei, talvez a tua vida, toda a tua vida, possa ela própria transformar-se num conjunto de estrofes harmonizado por um sentimento.

Agora, o meu amor toca guitarra aqui ao meu lado e, de alguma forma, eu sei:

Enquanto houver dálias ao sábado, tudo estará bem. 


quarta-feira, 17 de junho de 2020

Céus


Do flexiban

Dois comprimidos mais tarde, deitada de costas na cama, numa penumbra de sesta, vigiada pelo roncar do cão, adormeci a contratura que vive agarrada ao meu pescoço há mais de dez anos. Perguntam-me por que  não me livro dela. É uma contratura de estimação. Um repositório discreto de todos os enervamentos e angústias. Testemunha silenciosa de bagagens escondidas no fundo do rio. Dor amiga que avisa dos excessos. Álibi perfeito de relaxantes musculares. Essa pequena maravilha do reino da ciência.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Balada do Mar Salgado

Quando março começou seguiu-se junho e já ia na metade.
Perdi a primavera na minha cidade. Não vou falar dos jaracandás. Toda a gente fala nos jaracandás e até esse tempo já passou. Vou falar no frio das manhãs de primavera. Nunca passo tanto frio como naqueles dias em que decido que estará calor à tarde. Acontece todos os dias entre março e junho. Fez-me falta o frio das manhãs de primavera. É um frio que nos insulta, que nos coloca no nosso insignificante lugar, que nos emagrece. É o segundo ano que perco esse frio. O outro ano em que também o perdi foi um ano memoravelmente mau.
Cá em casa estamos bem, obrigada. Quando alguém tosse perguntamos com um ar descomprometido mas interessado “– covid?”.  Até agora as respostas têm sido sinceramente negativas.
Passámos três maravilhosos meses de quarenta, isolados mas felizes, entre o ócio isento de culpa e a comodidade dos relógios de sol avariados. Lemos. Cozinhámos. Tocámos a duas mãos uma pauta inteira. Banimos o pouco que ainda havia de televisão. Por pudor, fingi lamentar-me o mais que pude.
Agora já não deixamos os sapatos fora de casa. Não desinfetamos as mãos sempre que passamos por alguém e não passeamos o cão vinte vezes por dia. Não podendo manter a quarentena, esquecemo-nos completamente do pretexto e acumulamos máscaras cirúrgicas pelos cantos da casa sem sequer saber a quem pertencem.
Não voltei, ainda, a cruzar o mar.
Mas o mar, que é meu elemento, corre-me nas veias e, ocasionalmente, no rosto. Está em mim mesmo quando o meu único horizonte é a terra e as árvores de que são feitos os braços com que me embala o meu capitão.
Talvez talvez talvez, só, até nem precise de voltar.