sexta-feira, 4 de junho de 2010

Diário de Bordo

Era Janeiro e fazia um frio glaciar.
Eles estavam os dois sentados a estudar numa desconfortável sala apinhada de gente. Cheirava a respiração, a medo e ao tédio.
Eram quatro da tarde e ele convidou-a para lanchar no café do outro lado da rua. Ela seguiu-o, hesitante e contrariada pela falta de tempo, a olhar para o relógio de plástico num cálculo de dividir por páginas as horas que lhe restavam antes da próxima aula.
Entraram numa tasca com ar sujo e enquanto ela olhava enjoada para os três bolos que constituam a opção disponível, ele mandou vir dois vodkas puros.
E quando ele lhe estendeu um dos copos em silêncio, ela levantou o olhar da vitrina enfeitada por moscas e, pela primeira vez, reparou naquele homem de sotaque cerrado, chegado de um uma ilha a mais de mil quilómetros, que teve a ousadia de presumir que ela bebesse vodkas puros às quatro da tarde, entre um pastel de nata e um livro de direito.
Nos anos que se seguiram, de todas as vezes que lhe perguntavam o que raio via ela numa pessoa tão obviamente diferente de si própria, haveria sempre de se lembrar do episódio do copo de vodka, ficar sem resposta convencional e atirar as culpas aos ombros de velejador treinado, herdeiro de genes de marinheiros e presidiários.
Sabia que não valia a pena explicar aos outros que se tinha apaixonado por um pirata. Assim, longe do seu navio no meio do Atlântico, ele parecia apenas uma parte daquilo que era: Alguém que não pertencia a nenhum lugar.

2 comentários:

  1. Pois é. Não sou fácil de compreender porque não compreendo o que é óbvio para os outros e eles não conseguem ver além da sua "normalidade".
    Quanto à vodka, já me deixei disso. Hoje tenho um paladar mais apurado...

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