quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Nas antípodas de Salomé

Ofélia é uma fraquíssima personagem da literatura que Shakespeare só se terá dado ao incómodo de criar por, num erro de avaliação, ter considerado que Hamlet não teria suficiente dimensão trágica sem uma mulher morta a boiar num rio.
O fascínio por Ofélia é de tal forma incompreensível e injusto que me intriga verdadeiramente que uma criatura tão insípida tenha servido de inspiração a tantos pintores. Nalguns casos, como demonstra a imagem que ilustra o post, com indesmentível sucesso.
Ofélia era uma mulher insignificante e destituída de personalidade que passou a primeira parte da sua existência enquanto personagem a obedecer ao seu pai, a segunda parte a alimentar uma morna e despropositada paixoneta pelo enlouquecido Hamlet, depois lembrou-se de enlouquecer ela própria - temo que por mera solidariedade com Hamlet ou absoluta falta de originalidade - e por fim, lá se decidiu a suicidar.
Ofélia, que nem sequer chega a ser misteriosa nas suas metamorfoses, limita-se a ser patética.
E por mais beleza que possa existir num bucólico suicídio por afogamento, a verdade é que o suicídio se purifica nos seus fundamentos. Não se sabendo se Ofélia morre por ter sido rejeitada por Hamlet, se pelo desgosto da orfandade, se pelo simples facto de ter enlouquecido, ainda que morrendo na água, morre sem se limpar. Ofélia suicida-se com a mesma falta de intensidade de quem acidentalmente cai na sua própria cova antecipadamente aberta para receber o corpo.
Shakespeare retirou-lhe qualquer legitimidade na pretensão ao estatuto de mártir. E essa é a única e verdadeira tragédia de Ofélia. Foi traída pelo seu criador.
Vendo bem, dificilmente haverá tragédia maior do que essa.
P.s. A pintura - da qual o texto é mero pretexto - é a "Ofélia" de Jonh Everett Millais.

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