quarta-feira, 30 de março de 2011

dos bichos que não podes ter

vais à praia e vês o peixinho. o peixinho se encanta de ti, num bronzeado dourado, cabelo molhado e pele a cheirar a fruta dos trópicos. pede comida. e tu dás. o peixinho fica contente, faz mais umas acrobacias e pede mais. e tu dás. muito riso. escutam-se hulahulas e o sch-sch-sch das folhagens. coqueiros e palmeiras.


o sol esconde-se, a brisa levanta e o dia acaba. arrumas as tuas coisas, vens para casa. insólito: o peixinho segue-te. mais: até se adianta! quando começas a sacudir a areia dos pés olhas e está sentado no capacho de entrada, com cara de quem está fora de água. tu o acolhes, não sem antes o mandares embora, ainda com convicção. é só esta noite – dizes a cantar –; amanhã, voltas para o mar. num aquário improvisado, finge que dorme todo contente, mas está a magicar agrados.


a manhã seguinte é de nevoeiro, desculpa cúmplice. então vamos passear e vais amanhã, que é Domingo. corda à volta do aquário. passeio. conversa. quotidiano de Sábado. frutaria, florista… peixaria não, seria de muito mau gosto. hoje vamos ao talho!, escarnece o peixinho. quotidiano de sábado – um perigo para a sedução. tarde de jardinagem. o peixinho assiste os teus trabalhos do aquário suspenso no ramo de uma camélia a rebentar de verdes folhas lustrosas. as pétalas já se tinham ido todas. duram tão pouco… gostava de as ver, diz o peixinho. olhas de soslaio – bem sabes, peixinho, que só aparecem no fim do Inverno e que os primeiros mornos da Primavera levam os últimos botões... o peixinho sabe que tu sabes que ele sabe. aliás, tu sabes que ele sabe que tu sabes. sorriem. prossegues na jardinagem.


o peixinho vai ficando, sempre com as desculpas cúmplices da natureza. acaba por conhecer as camélias, que até o desiludem. tanta expectativa…


acabas por enxotar oficialmente o gato que costumava fazer umas visitas surpresa. para o efeito, recorres a bombinhas de Carnaval do stock da mercearia ao fundo da rua. na mesma leva, assustas definitivamente os pombos e outros, como as gaivotas que em dias de tempestade no mar vinham passear até à colina da tua casa. ultrapassas vários incómodos. até gente de quem gostas mas que não gosta de peixe.


numa manhã de Junho desaparece sem deixar bilhete. nem uma escama azul marinha de recordação. ainda tentas ligar-lhe pelo búzio que ambos apanharam no Outono passado. sem resposta.


o peixinho é um bicho que não podes ter. ouve bem o que te digo. tem a tendência de voltar para o mar. e deixa-te uma espinha atravessada na garganta que pica para sempre.


terça-feira, 29 de março de 2011

segunda-feira, 28 de março de 2011

Farois


Todos os fins-de-semana, na minha ausência, aparecem coisas em casa que não estavam aqui antes. E não estou a falar das melgas gigantescas que tomaram conta do meu lugar no sofá. Tudo começou na primeira semana com a materialização de uma cama no quarto de hóspedes. Na segunda semana, quando cheguei a casa, havia um espelho na casa de banho e toalheiros pregados na parede. Desta vez fui surpreendida por um gradeamento no primeiro andar. Alguém descobriu e arruinou o meu plano de me suicidar dentro de casa, atirando-me em voo picado da mezzanine para a sala de estar. Acho que estas aparições não se dão de repente, quando não estou. A casa está viva e prenhe de benfeitorias. Todos os dias cresce. Simplesmente, como o crescimento é lento e eu distraída, só me apercebo quando estou uns dias fora. Ainda pensei que o responsável fosse o suspeito do costume. O meu senhorio, encapotado agente da Mossad. Encontrei uns rastos de sola de ténis à volta da minha casa de banho e tirei-lhe imediatamente as medidas. Com a intenção de o confrontar com as minhas suspeitas inventei um pretexto para o chamar. Apareceu três minutos depois vestido com um daqueles fatos que se usam na caça submarina. Apesar de se ter recusado a tirar as barbatanas consegui calcular-lhe o tamanho do pé e percebi logo que os rastos são demasiado pequenos para terem sido feitos por ele. As minhas suspeitas recaem agora sobre o faroleiro. O homem que, apesar das minhas vigilâncias nocturnas em redor do farol, jamais consegui ver. Abordei o assunto do misterioso faroleiro com o agente da Mossad que se limitou a olhar em redor, fazendo um gesto de silêncio com o dedo sobre os lábios, enquanto deu uma cambalhota no ar e apontou o buraco da salamandra que ainda não existe e que temo que seja a próxima coisa a aparecer no primeiro fim-de-semana em que me apanharem fora de casa. Encolhi os ombros e acompanhei-o à rua onde fiquei a vê-lo afastar-se, caminhando de costas, daquela maneira profissional como se caminha quando se estão a usar barbatanas. Os velhos da praça, logo que me viram à porta, vieram convidar-me para uma jogatana. Tal como previsto, a Vanity Fair que fingi esquecer no tasco local já está a dar os seus frutos. Fartaram-se da bisca. Estavam a jogar xadrez enquanto discutiam a crise política nacional. Um deles disse-me que no tempo do Salazar não tinham que aturar isto porque nunca havia eleições antecipadas. Voltei para casa com uma dívida de jogo e uma inquietação na alma. Aqui ou em Lisboa, as saudades nunca me largam.

volta ao dia em 80 Mundos


não se prende o amor com pregos, ao coração. não é assim que funciona.

Neste blog também se fazem propostas legislativas

O Estado deveria ser chamado a intervir nesse flagelo social que consiste na incompetência generalizada dos cidadãos para manter uma relação amorosa a longo prazo. Além de afectar a produtividade nacional e aumentar o consumo privado, este drama social, pela sua natural susceptibilidade de induzir à depressão, assume contornos de problema de saúde pública. Demonstrado o fracasso geral da auto-regulação, conto com o Estado para nos garantir a todos relações amorosas mais eficazes e sustentáveis. Inspirada no sistema da praxis da minha antiga universidade – onde se publicitavam as relações sérias fazendo um rasgão a meio da capa do traje académico e se anunciava o seu final, cosendo o dito rasgão com linha da cor do curso – burilei um sistema perfeito que nos pode livrar de vários desgostos. Proponho a institucionalização obrigatória de um cadastro público, disponível na internet, dos relacionamentos amorosos de cada um. Uma vez terminada a coisa, o ex casal seria obrigado a preencher um formulário previamente aprovado por uma comissão, do qual constassem, o mais objectivamente possível, além das características do ex-outro, as causas da ruptura. Este sistema teria três inequívocas vantagens: em primeiro lugar, a capacidade de objectividade do outro, com vista a um presumível final e à necessidade de uma justa avaliação, passaria a ser considerada uma virtude indispensável a um relacionamento. Em segundo lugar, todos passaríamos a adoptar o nosso melhor comportamento no decurso da relação em vez de, tal como acontece agora, isso só suceder durante as primeiras duas semanas. Por fim, a disponibilização pública da informação relevante sobre o candidato evitaria esse outro flagelo social que é a publicidade enganosa. Enquanto o Estado se demite da sua função de me garantir uma escolha informada resta-me adoptar uma forma um pouco mais arcaica, mas igualmente eficaz, de despistagem da conversa da treta: a partir de agora só invisto sentimentalmente num homem que esteja disposto a tatuar o meu nome no peito. Assim, por cima do coração.

domingo, 27 de março de 2011

domingo

- é o rali de Portugal… - onde? - ai isso não sei… aquilo parecem as Beiras - o Guilherme e o Bernardo foram - mas vão sempre - o Bernardo não, não foi uns tempos, por causa da menina - ah pois - não, é Alentejo… - com aquela vegetação toda…? não pode ser… só se for mais cá para cima... - não que essa terra Santana-Não-Sei-Das-Quantas é das primeiras que se vê depois de se sair do Algarve - ai não pode ser… que estranho, tanta árvore - olha, passa-me a travessa - queres que te sirva? - o Alentejo não é o Sahara… e de onde pensas que vem a cortiça? - não, passa-me… e então as obras na casa do tio Belchior… aquilo nunca mais acaba… - ah, e agora é que vai durar, fase de acabamentos – toda a gente já sabe como é e aquilo ficou tudo esventrado, tudo - então mas e os tectos, aquilo eram tectos lindíssimos, tudo trabalhado - ah, agora fazem uns moldes, é um espectáculo, fazem uns moldes e quando refazem o tecto fica igualzinho ao que estava - ai sim? - ui haviam de ver o entusiasmo do Alexandre com aquilo tudo, estava muito entusiasmado… - como é que…? - Contralex (risos) - contra a lei, que nome mais parvo - então: é de construções Alexandre… (risos) - mas parece que têm que ter um alvará específico, para fazer restauros… - oh pai, mas isso só é preciso se forem monumentos ou... - não não, que eu sei que ele tem esse alvará, filho - acho que estás a confundir - estou-te a dizer… - ai eu tenho pena daquele rapaz, o Tomás - sim, é uma pena, é um tó-tó - a culpa é do pai! vai ser outra história como a da Teresinha - que acabou na desgraça que se vê… agora meteu-se na bebida, não a deixaram seguir filosofia, era a vida dela, a filosofia, a mania que ela fosse para o Conservatório, e depois ficou na Academia, mas que vida triste… - ai sim? não conheço… - ah pois foi! então não sabes quem é…? é a filha da D. Gilberta! foi tanto estudo, para nada, ficou na Academia e não fez nada da vida. vocês nem imaginam a figureta que ela fazia para atravessar a rua, vejam bem, atravessar a rua! parecia uma tolinha! - pois… o menino, ai menino, qual menino qual quê, que aquilo é um homem, ele está no 12,º ano, não teve infância… - é incrível, noutro dia fomos jantar lá a baixo, ficámos ao pé deles, estava a família toda, e o miúdo passou o tempo todo a contar anedotas sobre a União Soviética… que palhaçada - mas a culpa é do pai, que meteu na cabeça que ele ia ser um Nigel Kennedy - a mãe também se calou - a mãe…? oh coitada, tu bem sabes como ele é… - agora tudo que é concerto lá está o miúdo e francamente… - eles ficaram na direcção da Academia para poder exibir o miúdo, quase se mataram… - e é um virtuosismo que nem existe, eu não posso falar muito mas… - ai pois é, o miúdo não é assim tão bom , pois não… - noutro dia… - que dia? - quando estávamos a jantar e tu até disseste dos sinos, que estava a ser um exagero - ah pois foi… e já tinha 84 anos - o da Clara? já? - ah pois... mas tanta doença… sempre me lembro dele já doente - pois - mas porque é que tens que ir agora para Vale de Cambra? - porque é assim… - ai menina, que estupidez, ficavas em Espinho - eu bem queria… - já não basta o que andas a passar… agora para Vale de Cambra, aquilo Deus me livre - ...e fomos ontem - lá ao Porto? - sim, muito bom, um bocado caro mas… - ah mas vale a pena, de vez em quando - é, tem que ser - é ao pé do Ferreira Borges, num Palácio das Artes que nem sabia que existia… - é o mesmo do DOC, aquele no Douro, acho que é em Armamar - eh pá, muito bom mesmo - e cheio! não percebo onde esta a crise - andava a ligar desde 4.ª feira, tudo cheio, chegaram a perguntar-me se queria mesa para a uma da manhã… - é tem sido assim, ou ligas antes de 4.ª ou não tens hipótese - mas hoje vêm jantar lá a casa… - sim sim - queres que leve uma sobremesa? - raios partam a mudança da hora, detesto isto

ritmos

sexta-feira, 25 de março de 2011

cursos de auto-defesa


por vezes preciso que me esfreguem um espelho no focinho

naquilo que faço é egoísmo gostar ou não gostar de uma terra.
todos os lugares são “gostáveis” desde que se assuma o seu “povo”.
desterrada tantas vezes, eu já devia saber isto bem.
como me disseram esta manhã, eu não sou de lado nenhum e ando sempre a tentar pertencer. ora, isso nunca vai acontecer.
pode ser que eu consiga ser adoptada por um “povo” qualquer, que precise de mim.
e, assim, possa ser de algum lado. afinal, a orfandade é minha.






quinta-feira, 24 de março de 2011

preferia uma coisa destas do que um ram... não. preferia uma coisa destas com o ramo de camélias

Cada memória apaixonada tem suas madalenas e a minha -saiba disso, onde quer que você estiver- é o perfume do tabaco claro que me devolve à tua noite espigada, à lufada da tua pele mais profunda. Não o tabaco que se aspira, a fumaça que reveste as gargantas, e sim aquela vaga equívoca fragrância que o cachimbo deixa nos dedos e que em algum momento, em algum gesto despercebido, sobe com seu látego de delícias para encabritar a lembrança que tenho de ti, a sombra das tuas costas contra o branco velame dos lençóis. Não me olhes aí da tua ausência com essa gravidade um tanto infantil que fazia do teu rosto uma máscara de jovem faraó núbio. Acho que sempre ficou bem entendido que nós só daríamos um ao outro o prazer e as festas leves do álcool e das ruas vazias da meia-noite. De ti não tenho mais do que isso, mas na lembrança me voltas nua e derramada, nosso planeta mais preciso foi a cama em que lentas, imperiosas geografias iam nascendo das nossas viagens, de tantos desembarques amáveis ou resistidos, de comitivas com cestas de frutas ou flecheiros à espreita, e ganhamos cada poço, cada rio, cada colina e cada planície em noites extenuantes, em meio a obscuros parlatórios de aliados ou inimigos. Oh, viajante de ti mesma, máquina de esquecimento! E então passo a mão pela cara num gesto distraído e o perfume do tabaco em meus dedos te traz para me arrancar outra vez desse presente costumeiro, te projeta antílope na tela desse leito onde vivemos os intermináveis caminhos de um efêmero encontro...

CORTÁZAR, Julio ::: Último Round*1969

quarta-feira, 23 de março de 2011

processos de afasia

Acordámos no deserto. Tínhamos areia debaixo das unhas, dentro dos ouvidos e nas narinas. Não nos dentes. Não, ainda, nessa altura. Não no deserto daquela noite.
Ficámos deitados nas almofadas de veludo da tenda berbere a beber chá de menta enquanto ouvíamos o barulho que faz a noite quando se levanta sobre o deserto sem fim. Com os olhos postos na aurora e as mãos esquecidas nos meus joelhos gelados prometeste-me uma existência sem dor. Ofereceste como testemunhas da tua verdade as cobras, escorpiões, escaravelhos e todas as criaturas rastejantes que conseguiste manter longe dos meus pés nus. Eu não precisava de testemunhas. Nunca duvidei de ti.
Nem quando no dia seguinte os camelos foram incapazes de encontrar as margens do rio e os guias insistiram numa direcção que não era a da tua bússola. Nem aí duvidei de ti.
A promessa daquela noite haverias de a repetir à exaustão. Em cenários dispersos por vários continentes. Sempre com as mãos pousadas sobre os meus joelhos. Aquecidos.
Cumpriste-a postumamente.
Cauterizou-me os nervos o sol desse outro deserto em que acabaste por me abandonar.
Deixei de sentir dor.
Mas nessa altura passei a duvidar. De mim.

À Estrelita


E ainda assim, encontraste tempo para ler uma revista inteira, de fio a pavio.
Na tarde em que paraste o tempo para fazer o que fazes melhor.
Tomar conta de todos nós...
Sempre.

linda


uma vida de paixões.

terça-feira, 22 de março de 2011

CXX


"Cento e quatro dias
que fazem as férias
e a escola acaba com elas.
mas o grande problema
que todos vivemos
é saber como aproveitá-las
..."

Assim começa a canção de abertura de uma das séries de desenhos animados preferidos das minhas filhas mais velhas retratando o dilema que eu supunha ter de enfrentar nos últimos cento e vinte dias.
Puro engano.
Em boa verdade, nos últimos cento e vinte dias, o dilema que se me apresentou foi sempre o de decidir que tarefa realizar em primeiro lugar por forma a que o equilibrio da gestão da vida familiar não fosse perturbado.
Tarefa àrdua, como é bem sabido, numa familia recentemente alargada.
Devo ainda confessar que, neste período, mantive ao serviço a empregada doméstica a quem demovi de se reformar há seis meses atrás, alegando ser-me impossível ficar de licença de maternidade sem os seus serviços. A contragosto lá se comprometeu a ficar até eu regressar ao trabalho.
Agora anda a instruir a empregada nova.

Assim, aos cento e vinte dias já o tempo os levou (felizmente os de Inverno) e eu nada fiz.
Não li um livro, nem uma revista de fio a pavio.
Não li o jornal diariamente. Acumulei semanários sem tocar em muitos dos cadernos e lambi "as gordas" dos restantes.
Não ouvi um album completo, só os hits do momento, no rádio do carro furtuitamente sintonizado.
Não escrevi um post. Não tive uma ideia nem condições de abrir o portátil (a não ser às onze da noite, quando o marido reclamava a minha companhia).
Fui três vezes ao cinema, duas delas para ver desenhos animados.
Continuei sem ver televisão, à excepção dos canais Panda, Disney e Nickelodeon, como, aliás, desde há quase quatro anos.
Fui uma vez ao teatro. Ver a "Mãe Coragem e Seus Filhos" (foi o que se arranjou).
Dormi alguma coisa.
Não apanhei chuva, nem suportei o frio.

Tive uma existência profunda como uma lente de contacto.
Mas passei horas perdida nos olhos da minha bébé.

Amanhã vou voltar ao trabalho.
Hoje fui almoçar à praia. E o sol apiedou-se de mim, e escondeu-se atrás das nuvens.

A Música

A MÚSICA

A música partilha com a flor
a carne que se alaga como um copo.
A música é um rizoma atómico
cheia de sílabas grossas e finas
no peito maduro da onda.

Por isso a onda cai e a flor
também. E se te digo sei que ficas
triste e é quando substituis essa
geração de força por dois pequenos
vasos à entrada do teu dorso (e qual
és tu e qual sou eu é uma haste subindo)

Do teu lado esquerdo é dia.
O vestido é branco e aponta
a cidade a que chegas com os
dedos, rodando os ombros mas
não a cabeça. O teu olhar
é uma ferida musical sem verbo fixo:
a penumbra bate às vezes na
pálpebra, outras na imaginação.

A queda gera o seu próprio
impulso, como se fosse o preen-
chimento de uma forma: chama-se amor
e serve para os ouvintes ouvirem o esbracejar
do desejo, esses versos de asa silenciosa-
ouves?

Há poetas azuis que julgam que a
coerência é um pardal azul (da goela
até aos pés). Normalmente limpam os óculos
com coerência, em vez de com (enfim)
e depois vêem o mesmo pardal, a todas
as horas do dia e da noite, sentado azul-
mente sobre o seu nariz azul.

Pela direita, dizes que os versos
não caem se mudares constantemente
o chão. Mas os sonhos sim, e que a transla-
ção do vento sabe do remorso dos bichos mais
pequenos: procura as palavras junto ao chão
e se não me vires,
é porque o silêncio é também a música
e canto-a sem nome
para ti

Rui Costa
in Um poema para Fiama
Labirinto
2007

birra


segunda-feira, 21 de março de 2011

Full moon party


Pelas mesmas razões que me desfiz do CD dos boleros, não quis ver a lua cheia.
Para evitar o risco do vislumbre fechei as portadas às seis da tarde e recusei-me a sair de casa até o sol da manhã garantir um céu isento de luas traiçoeiras a despoletar pensamentos proibidos.
A culpa é da música da Rosana que a Estrelita me ofereceu há muitas luas atrás.
Consta que há uma relação entre a lua e os amantes.
Talvez fechando os olhos à primeira se consigam apagar os segundos.

handicaps


descobri que, apesar de míope com dioptrias de - 2,75 e - 3,25 – e sem lentes me considerar amblíope, reconheço melhor pessoas que não vejo há 20 anos do que pessoas que não vejo há 20 kgs.

Pagã até à medula

you must believe in spring

duas cervejas e um ginger ale
duas tostas mistas
tremoços

em brasa, um rosto feliz
Domingo
já não me lembrava de estar a contar as ondas do mar e a ver as que vem atrás ultrapassarem, mesmo antes de morrer na praia, as que vinham mais à frente. maré a encher.

o carreiro no mar, sob o sol, é de ouro
trinco um PernaDePau por saudosismo
e, ao longe, o barco pirata aparece e desaparece. viaja lento.
veio ver-me sorrir.

*

acabo o dia na urgência pediátrica. regresso a casa com um pacote de fármacos para sete dias.

lua cheíssima. o equinócio da Primavera ocorreu às 23h21m e vão ser 92,79 dias até ao próximo Solstício.
grata pelos começos.



domingo, 20 de março de 2011

água mole em pedra dura

Compraz-me saber que com paciência e humildade é possível civilizar as pessoas.
Desde que eu cheguei, a vil…er… aldei…er… povoaç…, digo, estas vinte criaturas de deus, estão a ficar muito mais urbanas.
A frequência com enfiam a cabeça dentro das minhas janelas para ver o que se passa aqui dentro tem diminuído diariamente. Também começo a deixar de ver mulheres na rua com rolos na cabeça e meias de malha por cima dos collants.
O primeiro sinal de progresso ficou a dever-se ao meu senhorio. Depois do ataque de histeria que tive no dia em que acordei da minha sesta no sofá com uns olhos vesgos a velarem-me o sono, ele interveio em minha defesa e informou-os que se me for embora por me sentir acossada lhes vai passar a extorquir a eles o dinheiro da renda.
O segundo é fruto de uma agressiva estratégia que consistiu em passar a olhá-las de alto a baixo com o sobrolho direito erguido, cada vez que as encontro por aí nessas figuras inestéticas.
Hoje, no café da praça, digo praceta, digo aqueles dois bancos onde os velhos jogam à bisca, havia pessoas a tomar o pequeno-almoço fora de casa enquanto liam o jornal. Claro que o pequeno-almoço era aguardente, o jornal era o correio da manhã e a leitura era a secção dos anúncios eróticos. Ainda assim, encorajada pelo potencial que detectei, perdi o amor a dez euros e fiz de conta que me esqueci da minha Vanity Fair em cima da mesa. Para ver se os vicio. Tenho esperança que daqui a um mês nos possamos reunir todos na minha sala para discutir, preferencialmente em inglês, a política externa dos Estados Unidos da América relativamente à Líbia.
O maior progresso em matéria civilizacional foi aquele que tive oportunidade de observar da minha janela há apenas meia hora: um táxi. Ainda pensei que fosse uma miragem mas depois aproximei-me, toquei-lhe e constatei que, desta vez, não se tratou de uma armadilha do meu cérebro.
Foi o primeiro táxi que vi desde a minha chegada.
Infelizmente, a pessoa urbana e civilizada que se desloca de táxi não faz parte do meu povo. Vieram três almas aqui a casa informar-me que a utente é uma senhora que veio ao bailarico do “centro cultural” (Não se deixem enganar pela megalomania dos autarcas nacionais. Já basta a triste figura que fiz quando lá fui perguntar se tinham exposições de pintura).
Com grande pena minha, uma certa timidez natural aliada à incompletude do meu processo de inserção social, ainda não me permite aceitar convites para a matinée e passar a tarde de Domingo a dançar lambada com os velhos da bisca.
Mas para a semana cá estaremos…

p.s. A partir de agora retomo a minha normal emissão de posts carregados de dor de corno e lmito-me a fazer-vos um relatório semanal sobre a mnha nova terra.

Porque o Domingo é um bom dia para treinar a elevação espiritual e eu não quero que nada vos falte

sábado, 19 de março de 2011

Do sofrimento

Não sei de onde veio a hedionda ideia de que o sofrimento é um processo necessário na elevação humana. Dir-me-ão que são resquícios de moral judaico cristã mas não me parece que possa concordar. Também há disso nas outras religiões e filosofias. O budismo, por exemplo, está impregnado dessa ideia criminosa. E nem a amoral mitologia grega conseguiu escapar ao facilitismo de justificar a tragédia com a prossecução de um bem maior.
O sofrimento como factor de edificação da alma é uma mentira tão velha quanto cruel.
A maior parte das genuinamente boas pessoas que conheci na vida tiveram existências absolutamente virgens de dor e contrariedade.
Em contrapartida, não me lembro de ter analisado nenhuma atitude monstruosa que não tivesse sido antecedida por um rol de desgraças.
O mal - de que o sofrimento é mera subespécie - é melhor catalisador na deformação do carácter do que na purificação da alma.
A mim, que nasci com a generosidade indexada ao nível de satisfação pessoal, nunca nenhum sofrimento produziu o efeito secundário de me tornar uma pessoa melhor.
E aviso já que, nem que seja apenas para demonstrar a minha tese, enquanto durar esta crise, tenciono manter-me o mais detestável de que for capaz.

Comunicação por omissão


Lamento o fim dos dias em que não havia telemóveis, nem internet, nem redes sociais, nem SMS.
O silêncio deveria ter continuado a ser uma acção. Não esta omissão, insuportavelmente eloquente.

Não é que eu esteja a ficar paranóica...

Não sei se é do excesso de oxigenação, do sindroma de privação por falta do monóxido de carbono ou de uma outra qualquer desorientação química.
Sei é que o meu cérebro começa a desenvolver a convicção de que nesta terra nada é o que parece.
A velhinha estrábica que me espreita pela janela, subitamente, parece-me uma espia comunista e quase a consigo ouvir praguejar num russo com sotaque de montanha.
A insólita tabacaria do lado, muito provavelmente, será um negócio de fachada que encobre um entreposto de tráfico de droga.
O pássaro que me entrou em casa, na verdade, talvez fosse um evoluído mecanismo robótico que andou a filmar os meus movimentos e a fotografar os documentos secretos que não guardo aqui.
E o meu senhorio…esse, desde aquela conversa sobre o curso de segurança pessoal em Israel, ninguém me tira da cabeça que é um agente da Mossad.
Ontem à noite, com cinco graus na rua, apareceu-me à porta de t-shirt, shorts e cabelo molhado. Estendeu-me uma bacia cheia de calhaus e limos que, percebi depois, eram percebes. Olhei para aquilo desconfiada enquanto ele me dava precisas instruções técnicas sobre a arte da cozedura dos calhaus. Não tive coragem para lhe dizer que não tenho sal em casa.
Mesmo assim, não ficaram mal. Comi-os acompanhados de duas cervejas e fui para a cama embriagada. Acordei com uma dor de cabeça insuportável e com o plano secreto de vigiar de perto o faroleiro. Pressinto ser essa a chave para a resolução do mistério das coisas que não são o que parecem.
Esta tarde vou pescar sargos com o israelita da Mossad.
Felizmente, trouxe comigo os meus botins da Burberry.

Nothing, ever, was good enough

Percebe-se que se perdeu toda a capacidade de criar quando se começa a reciclar as nossas próprias estórias.

sexta-feira, 18 de março de 2011

partilhando

A. sempre foi doméstica. fez a escola que foi considerada suficiente pelos seus pais. em casa estudou o piano até ao fim, salvo os exames para o Conservatório. mas a sua dedicação maior foi ao governo da casa – aprendeu a fazer tudo porque – como dizia a sua mãe – “quem não sabe fazer, não sabe mandar”.

já não muito nova casou-se com S.. comerciante de tecidos finos, bem estabelecido e onze anos mais velho. viúvo de um casamento que não sobreviveu ao primeiro parto de I.. o varão concebido na noite de núpcias levou consigo a mãe, deixando S. amargo por muito tempo.

A. veio a dar-lhe três filhas.
um amor imenso. de pura veneração. tudo entendia do seu marido. a tudo acorria e socorria. a solução de muitos problemas encontrou-as S. na ponta dos dedos de A. quando ela lhe desembaraçava os cabelos. conversavam muito. ela bebia-lhe a tristeza que, por vezes, voltava com o vazio daquele filho perdido. daquela I. tão nova e amada. A. entendia tudo.

viveram vida cheia e feliz, com as infelicidades próprias da vida.

a viuvez tocou A. aos 82 anos de idade. a árvore velha e seca em que se tornara S. finalmente tombara. ela aceitou. serena.

uma das filhas quis as partilhas. contra a vontade das outras que queriam esperar que a mãe fosse também. obviamente, era a mais abastada delas.

A. assumiu com dignidade a função de cabeça-de-casal e apresentou-se para relacionar herdeiros e bens.
cabelo pouco grisalho atendendo à idade, arranjado. estatura acima da média da sua geração. perfume a rosas muito concentrado. aquele que é um cheiro velho. bom, mas velho. seco. cheiro de avó.

respondeu às questões que lhe iam sendo colocadas com clareza e calma próprias de quem tem tempo. acompanhada do seu advogado, ilustre causídico que há um par de anos se esquiva à reforma, daqueles cheios de verbo bonito de se ouvir.

findas as declarações e junta a documentação pertinente, após as combinações finais da praxe, A. pediu a palavra. na sua calma abriu a mala que trazia no braço e retirou um papel dobrado em quatro, que abriu. a tinta permanente manchava as costas deixadas em branco. era um pedido de S., que tinha ficado de cumprir.

- “Senhor Dr., há uns anos atrás o meu marido pediu-me que quando chegasse a sua hora a Senhora Dona E. não fosse esquecida. E pretendia que ela ficasse com a casa em que vive. Não sei se também devo juntar esta carta agora…”

- “Oh Senhora Dona A., mas quem é essa Senhora, qual o parentesco com o seu marido? Senhor Dr….”

- “D. A, a Senhora não me falou em nada disto…”

- “Pois não Senhor Dr..”

- “Portanto, esta Senhora é…”

- “Não é parente, Senhor Dr. E eu também quero que ela fique com a casa onde está. Ele queria assim. E eu também quero. Para cumprir a vontade dele.”


quinta-feira, 17 de março de 2011

conversas de café



« a prosa adere ao pensamento, uniformiza-se adapta-se a ele; e muitas vezes um subentendido produz um jogo de luzes e sombras cheios de profunda beleza, amiúde a frase breve produz inesperadas imagens pictóricas, outras vezes antíteses, ou as anedotas enriquecem as sentenças austeras, a argúcia atenua a trágica solenidade do assunto »
Lucius Annaeus Seneca * Corduba, 4 a.C. † Roma, 65 d.C.

o amor que eu aprendi

já só conseguia sentar-se curvado para a frente, cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos. há meses.
era como estava quando ouviu do médico que não havia nada a fazer. do muito que já se havia feito. das várias combinações de calmantes. na altura era assim que se tratavam os deprimidos. só algum tempo depois se compreendeu que não precisavam de ser acalmados.
as sessões que duravam horas. o psicólogo. o psiquiatra. o dormir a valium.

“… a não ser que ela regresse para perto da família dela, dos lugares onde viveu em menina… saindo daqui, quem sabe…”
ele não precisou nem quis ouvir mais nada, saiu antes que o homem acabasse a frase com um “…pode não adiantar nada”. estava farto da falta de esperança.

ela trazia o rosto pequenino. cada vez mais pequenino. era só olhos. cabelo curto. pele cinzenta da súplica de não ver a luz do dia. 41 kgs. 2 filhos pequenos. uma vontade imensa de morrer.

meteu-a num avião cheia de instruções.
ele foi um mês depois, esperou o fim do ano lectivo da menina - que pensava que ia de férias, como das outras vezes. ria-se muito quando o pai lhe dizia que a mãe já tinha encontrado uma escola para ela.

chegaram numa manhã gelada. amassados e mal dormidos. a um aeroporto patético do tempo em que não se usava aquecimento. excesso de bagagem – uma pequena fortuna em taxa suplementar por transporte de 20 kgs de brinquedos.
a roupa mais quente que tinham deixava passar o Novembro inteiro até aos ossos.

no almoço cheio de perguntas e pedidos de relatos de factos exóticos olhavam-se os 4, com vontade de fugir.
uma agonia que se prolongou pela hora do chá adentro. era Domingo.

o apartamento que lhes compraram por procuração tinha mobília comprada por procuração. não estavam habituados às cabeceiras de cama com torneados. riram-se muito do conjunto de tapetes do quarto-de-banho que incluía a insólita peça que cobria a tampa da sanita.

uma dia chegou a casa e ela só chorava.
lembro-me de os ver na cozinha, ela bonita e ele aflito.
ela chorava muito porque estava constantemente a queimar a comida por não se habituar ao fogão de discos eléctricos. e tinha medo que o cilindro explodisse.

o meu pai abraçou a minha mãe e disse que ia correr tudo bem.
e correu.

terça-feira, 15 de março de 2011

domingo, 13 de março de 2011

advice, like youth, probably just wasted on the young


(...)

understand that friends come and go,
but with a precious few you should hold on.


work hard to bridge the gaps in geography and lifestyle, because the older you get, the more you need the people who knew you when you were young.

(...)

sábado, 12 de março de 2011

carpinteiros de casas nas árvores

Era como se vivêssemos dentro de uma casa na árvore.
Especializámo-nos na arte da construção de um mundo imaginário que pudesse ser o eterno playground do outro. Os brinquedos eram sempre novos e brilhantes. A mesquinhez tinha sido erradicada. Todos nos ríamos muito. Não havia velhos nem doentes nem pobres. E as únicas crianças da casa éramos nós.
Mas um dia esqueceste-te do portão do jardim aberto. O teu desleixo fez entrar a realidade que submergiu o nosso reino de fantasia e me trepou pelos pés descalços. Até ao lábio inferior.
Não cheguei a deixar-me afogar. E se é verdade que perdi o meu lar, também é verdade que aquela nem sequer era uma casa a sério.
E sei isto tudo.
Só não me peçam que à realidade que me violou a consciência ainda entregue, de prémio, o meu apego ao sonho.

Life and Death

Life and Death, 1916, Gustav Klimt

sexta-feira, 11 de março de 2011

Dia menos cento e vinte e quatro

A minha qualidade de vida deu um salto qualitativo. Está tudo relacionado com a aquisição de um termoventilador, de uma manta polar e ainda com uns gritos raivosos que tiveram a virtualidade de pôr os painéis solares a funcionar. Assustado, o meu senhorio atravessou a serra a só parou para me comprar uma mesa e quatro cadeiras que chegaram hoje embrulhadas em celofane. Bastante civilizadas, por sinal.
Entusiasmada com o sucesso, ainda tentei reproduzir os meus guinchos histéricos com os senhores dos serviços de atendimento telefónico da Vodafone mas, aparentemente, talvez por eles saberem que eu não sei onde eles moram, não fui suficientemente incomodativa para justificar a instalação de uma antena extra que me permita ter telemóvel e internet em casa. Depois de muitas horas de investigação científica, descobri que se colocar o telefone no canto superior direito do frigorífico consigo ter rede suficiente para fazer com que o telemóvel toque. Claro que a chamada cai imediatamente a seguir, fazendo-me passar por uma aquelas pessoas intoleravelmente mal criadas que desligam o telefone depois de identificar as chamadas, mas, pelo menos, permite-me tomar conhecimento da identidade dos que ainda se lembram que existo reduzindo drasticamente o meu nível de paranóia do abandono.
Ainda não tenho fogão mas também já não me queixo disso. Depois de ter experimentado as refeições que se compram no Lidl e se aquecem no microondas, concluí que isso dos fogões é coisa de gente dada às futilidades da vida. Além do mais, fiz uma recente amizade com um grupo de pescadores que, devidamente conjugada com o barbecue do terraço, faz presumir a futura absoluta inutilidade do fogão. Claro que para que o futuro se torne presente, ainda terei que fazer amizade com alguém que saiba assar peixe e não tenha nada melhor para fazer entre as oito e trinta e as nove da noite. Tenciono manter os meus horários de refeições. Aqui ou em Lisboa, não sou nenhuma selvagem.
A questão dos animais mortos no lavatório tem andado relativamente controlada. Em contrapartida, relativamente aos vivos, não estou certa de que aquele cão preto que veio uivar para a minha porta de madrugada, não seja, de facto, um lobo.

O amor e a tuberculose

Há nos romances clássicos uma intrigante relação entre o amor e a tuberculose. A heroína apaixona-se, sofre um desgosto de amor e morre de tuberculose. Na versão masculina, mais rara, o herói apanha uma tuberculose, não necessariamente precedida por um desgosto de amor, e depois apaixona-se reciprocamente pela sua incansável cuidadora.
Não é garantido que se trate de mera falta de imaginação. Talvez no subconsciente dos autores clássicos esteja implícita uma interessante ligação entre o amor e as doenças infecciosas pulmonares.
No fundo, enquanto a paixão é um estado gripal curável com chazinhos e canjas de galinha, o amor corresponde à fase evolutiva da doença. Uma vez ultrapassado o ponto de não retorno, a infecção ataca os pulmões afectando a respiração, fazendo expelir sangue e muco e, nos casos mais graves, pode até levar à total falência orgânica. Se pensarmos bem poucas doenças servem a analogia de uma forma tão perfeita. O sarampo e a papeira, por exemplo, são totalmente imprestáveis.
Neste parágrafo, poder-se-ia dar um salto qualitativo de raciocínio explicando que a diferença de versões em função do género está relacionada com o facto de as mulheres se apaixonarem primeiro e amarem depois e de os homens só se apaixonarem pelas mulheres que já amam. Mas isso seria uma parvoíce. A versão masculina do cliché amante tuberculoso justifica-se apenas para que a história permita uma maior taxa de sobrevivência dos homens e deve-se ao facto de os escritores clássicos serem, também eles, maioritariamente homens.

ócio supra-humano









púrpura, azuis cinza
amarelos de reluzir olhos
raios nalguns fios do meu cabelo que transparecem num ar de riso




passei a tarde inteira no canto de um sofá
só para mim
podia esticar as patas à larga mas deixei-me ficar a um canto

um, dois ou três sonos
perdi a conta










e o rio começa a ganhar cor de coisa profunda, o vento que se levanta vai marcando cada vez com mais intensidade as suas ondas pequeninas
usa um crayon preto de pintar os olhos

os azulejos coloridos lá em baixo dão lugar às luzinhas que vão diamantar a noite

os montes ao longe
ganham a névoa de fim de tarde
a bruma das bruxas do Tejo
que se vestem de fadista e gemem pelos becos cheirando os cachaços dos homens





já quase só claridade
e um arrepio fininho





é o tempo das nuvens cor-de-rosa, que imitam a ponte falhando no tom






arquear a espinha
cravar as unhas no estofado alheio um par de vezes

enfado
é já escorrer pelas escadas abaixo


muito mais tarde, fui tentar apanhar as luzinhas que bailavam nas paredes de uma loja no bairro, que o meu sonho era ter uma bola de espelhos só minha. para brincar

Dourados

quarta-feira, 9 de março de 2011

maré de sizígia

não te esqueças. todas as noites.
tens que tornar a empurrar o barco de volta para a água.
e lutar contra esta lua nova que enche as vésperas de breu.
não te esqueças.
o barco tem que desaparecer no mar, longe da vista da praia, antes que venha o crescente.
cuida: bastará um ténue brilho para que se desenhe o carreiro de prata à superfície da água. é essa trilha de que o barco está à espera para voltar.

sente os pés descalços na areia gelada. movediça de engolir.
sente.

exausta. volta para cama.
já sabes que a próxima madrugada será igual.
até conseguires que o barco desapareça.

as mãos gretadas do sal. o rosto seco do vento.
o peito pesado do esforço.
para sempre.
para nada.

terça-feira, 8 de março de 2011

Dia menos cento e vinte e sete


Confirma-se. A vida no campo é dura e a longevidade das suas populações um mistério de difícil resolução.
A minha primeira noite foi marcada por uma tempestade sobrenatural que abriu frestas na terra por onde, entre outras coisas, se sumiu o falso optimismo que andei a reunir nas últimas semanas.
Os fenómenos naturais perdem toda a naturalidade quando os raios estouram a quinhentos metros de nós e não se vive em apartamentos rodeados por gente e pára-raios. Foi assim que os homens inventaram os deuses e os fantasmas. E só não percebe isso quem não esteve cá ontem. Sozinho. Ter ficado encharcada a caminho de casa e depois não ter aquecimento nem água quente para curar a hipotermia também teve um importante contributo no efeito dramático geral.
Ainda me ocorreu a possibilidade de me queixar a alguém, solução que seguramente me faria sentir menos miserável ou, pelo menos, ter-me-ia dado a confortável sensação de morrer acompanhada. Infelizmente, a Vodafone seguiu o exemplo de deus e abandonou-me. A internet nem se dá ao trabalho de me responder e o telemóvel substituiu as mensagens dos amigos pela enigmática e omnipresente inscrição “sem sinal”.
Foi assim que, prestes a ficar também eu sem sinais, vitais, depois de equacionar e descartar a possibilidade de atravessar a rua debaixo da tempestade para me ir enfiar no carro e aquecer-me no ar condicionado, lá me decidi a enrolar-me no lençol, com uma múmia, à espera que a noite e a tempestade fizessem o favor de me engolir.
Para meu espanto acordei viva. O mesmo não se pode dizer da borboleta, da abelha e das duas joaninhas que, prefiro nem saber como, vieram parar ao meu lava-mãos.
Nem tudo é mau. No campo, todos são simpáticos. Quando abri a porta da rua um sapo do tamanho de um prato de sopa coachou-me os bons dias com um ar animado. Fiquei orgulhosa por ter conseguido calar a tempo o grito de horror que se formou dentro de mim. Mas quando levantei a cabeça e percebi que dez das vinte pessoas que compõem a população estavam estrategicamente sentadas na praça em frente à minha casa, a monitorizar a minha existência, esse orgulho transformou-se em verdadeiro alívio.
Fiquei na dúvida se o dinheiro que os vi trocar entre si estava relacionado com o jogo da bisca ou com apostas da véspera sobre a hora em que eu sairia de casa aos gritos e rumaria a Lisboa.
Seja como for, a minha silenciosa sobrevivência à tempestade da noite passada fez-me ganhar alguns créditos entre a população local. Bateram-me à porta para me avisar que, hoje, no café da povoação, o almoço é galinha e cheira bem.
Eu também gostava de cheirar bem. Infelizmente, fui obrigada a perder a galinha por não reunir as condições mínimas de higiene impostas por um evento social dessa grandeza. A possibilidade de um banho está dependente de suficientes horas de sol para aquecer a água. Atendendo à forma como a natureza me tem acolhido, estava capaz de apostar que vai chover durante muitos e muitos dias.
P.S. Entretanto, a vinte quilómetros de casa consegui encontrar uma loja aberta onde me venderam uma manta. Foi um momento de profunda felicidade só ultrapassável pela possibilidade de conseguir ter som no canal 2.
(os caprichos da falta de rede não me permitem arriscar a revisão do texto. Sejam complacentes com as gralhas deste relato enviado do lado de fora de casa)

08.03



... não só mas também porque eu gosto demasiado da minha lingerie, hoje não me apanham a queimar soutiens.

não há entrudo em que eu não anseie pelas cinzas

domingo, 6 de março de 2011

::: hAppY B-dAy, Mr. Blog :::

Aniversário

Este blog faz hoje um ano.
Foi criado sob o signo da inveja e do despeito mas também teve por propósito servir os fins da amizade.
Gosto de pensar neste blog como uma grande casa de banho, numa festa privada, em que os amigos têm as conversas que se têm nas casas de banho, enquanto se olham ao espelho e retocam a maquilhagem. Ou, no caso dos homens, o que quer que seja que fazem lá na casa de banho deles.
Depois volta-se para a festa, porque – é importante lembrá-lo - a festa será sempre lá fora.
Aos que se entretém a ouvir a as conversas em frente ao espelho, aos que decidem participar nessas conversas, aos que aqui vêm por engano e nunca tiveram a indelicadeza de escrever palavrões na porta aberta, o mais sincero obrigada e voltem quando vos apetecer.

24 hours to go

As partidas indesejadas carregam uma nostalgia insuportável.
Especialmente desagradável é o espaço de tempo que fica entre o momento em que ainda não se partiu e aquele em que também já não se está aqui.
Sempre que antecipo este tipo de cenários escondo-os por trás de uma agenda que tenha a virtualidade de ocupar esse miserável espaço de tempo, fazendo-o correr, o mais possível, à margem da minha consciência.
Desta vez, a falta de adequada planificação aliada à coincidência deste período com as férias de Carnaval das pessoas normais, deixou-me sem rigorosamente nada para fazer. E embora fosse de supor que não ter nada para fazer assumisse a encarnação de um imerecido idílio, a verdade é que, nestas circunstâncias, transformou-se um pequeno inferno.
A agonia de assistir desanestesiada ao esvair da areia da detestável ampulheta omnipresente no meu pensamento é de tal forma violenta que já começo a considerar a possibilidade de me ir embora antes daquilo que é indispensável apenas para me esquivar a este tempo intermédio.
Para piorar a situação, constato que ainda não aprendi a fazer malas e que continuo a compensar essa falta de jeito com o hábito de levar comigo tudo quanto me pertence.

sexta-feira, 4 de março de 2011

quinta-feira, 3 de março de 2011

can you make the world stop spinnig round, can you? please... just for a while.


antony and the johnsons.soft black stars.storm.


Little children snuggle under soft black stars
And if you look into their eyes soft black stars
Deliver them from the book and the letter and the word
And let them read the silence bathed in soft black stars
Let them trace the raindrops under soft black stars
Let them follow whispers and scare away the night
Let them kiss the featherbreath of soft black stars
And let them ride their horses licked by the wind and the snow
And tip-toe into twilight where we all one day will go
Caressed with tenderness and with no fear at all
Their faces shining river gold brushed by soft black stars
And angels' wings shall soothe their cares
And all the birds shall sing at dawn
Blessed and wet with joy

You and i will meet one day
Under the night sky lit by soft black stars

Take Control Again

Depois de umas curtas férias pelo reino da loucura a minha mente encontrou sozinha o caminho para casa. Não lhe organizei uma festa da boas vindas porque ainda estou amuada pelo estado caótico em que a sua ausência me deixou a sala de estar.
Agora que ela voltou para tomar conta de mim, dou-me conta que, pensando melhor, as únicas marionetas que me fascinam são mesmo aquelas cujos fios são controlados pelos meus dedos.
Enormes dedos, por sinal.

N.

do nosso encontro casual sobrou muito do pouco que sempre houve.
chamaste-me pelo diminutivo do nome da minha mãe, de quem vocês guardam na memória o rosto que eu decalquei. a falta de visitas conservam-no na idade em que me vão encontrando.

o parentesco longínquo foi sempre medida da fragilidade da afinidade; a diferença de idades, somada à tua vida desregrada, tornou a nossa amizade inverosímil.
sempre fizeste parte de um lote de gente que me foi banida, portadores de uma estrela de David do desvario.
estroinices, demasiadas, com o irmão que acabou por te deixar pelo caminho.
quatro maridos, filhas, uma de cada um dos primeiros três. a primeira, menos de dois anos mais nova que eu.
tantas casas, recomeços. regressos.
sabia-te das infelicidades pelos outros.
não imaginei que ia descobrir que eram, afinal, a tua vida vista sob a luz errada. admirei-te os olhos, que nunca tinha reparado serem herdados da Laura.
e a mulher em que entretanto me tornei percebeu que passaste toda a tua vida apaixonada.

dois beijos e um sorriso franco.
obrigada.


quarta-feira, 2 de março de 2011

um dia de cada vez

http://www.youtube.com/watch?v=QhzbzwPNgXA

coração

há quem simplesmente não o possa manter intacto por toda a vida.

situação semelhante ao do que herda um palacete e nem para o travejamento do telhado tem. um tal imóvel carece de restauros, caríssimos. manutenção.
soalho.
ordem no jardim.
não se desiste do legado. escolhe-se viver só em parcelas que a cada meia dúzia de invernos se vão transferindo para os andares inferiores, diminuindo em área. o tempo cuida de ir degradando os salões. ecos que se vão fechando em quartos e salas que se trancam. chaves que se perdem. um par de incêndios que o descuido deixou arder.
chega-se aos baixos dos criados, onde se confina a três divisões, de entre as quais só uma é assoalhada. últimos alvéolos de um pulmão calcinado de fumo.

por papel de parede, recordações. por onde os seus olhos vagueiam nos dias. e nalgumas noites em claro.
a roupa de cama já não cheira a alfazema. já não há quem a coloque a corar.
ainda assim, sente-se em si. paixões domadas como velhos sabujos esquecidos dos dias de caça. dormitam aos seus pés.

ela entra, decadente. reconhece os cantos e senta-se à lareira. deixam-se ficar. estão em casa.

novo conceito de degredo: precisa-se.


nós as duas, metidas num barco,
dávamos cabo de qualquer Austrália.