sábado, 21 de maio de 2011

Levo a planície no coração



A minha missão nesta terra terminou dois meses antes do esperado.


Numa sala escura, três ou quatro homens de gravata sensaborona e corte de cabelo de gosto duvidoso, sentaram-se na frente de uns papéis cheios de números e decidiram que há um outro povo que precisa mais de mim do que este.
Como já começa a ser hábito, a minha nova vida foi-me comunicada através de telefone por uma voz arrastada num falso tom incomodado. Pelo menos, desta vez, pouparam-me ao apresentador de concursos, feliz por ter nascido, que anuncia exílios como quem entrega o primeiro prémio de um tétrico concurso de enciclopédias.
Aqui, na terra, ninguém sabe de nada. Ainda pensei em aparecer ontem, à hora da sueca, para lhes dizer que as nossas soirées culturais terão que prosseguir sem mim. Mas depois limitei-me a acenar-lhes da janela e a gritar-lhes que escondessem as moedas, não fosse a GNR aparecer e descobrir o casino ilegal que instalámos nos bancos da praça.
Afinal, hoje é dia de feira. E não teria sido sensato ensombrar-lhes a felicidade pela antecipação do prazer de comprar baldes de plástico, batas de velha, molhos de couves e selins de bicicleta, tudo devidamente embalado pela apropriadíssima música do Tony Carreira, a vida que eu escolhi.
Decidi que a melhor maneira de lhes dar a notícia é amanhã, na matinée. Vou subir ao palco e fazer um anúncio público. Fiz uma chegada discreta mas exijo uma despedida apoteótica.


O problema dos burocratas que, por decreto, deram a minha missão por cumprida é que, por falta de espaço, nunca tiveram a planície no coração.

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