quarta-feira, 26 de setembro de 2012

(de) Composições II

(de) Composições



Deixaram sair os últimos clientes, varreram o chão, fecharam as portas e tu ficaste sozinho, sentado na sala mal iluminada, a brincar com as teclas do piano. Havia, provavelmente, um copo com Bushmills ao lado de um maço de Marlboro. Havia, com toda a certeza, um telefone a transmitir esse instante em que compuseste a música mais triste que já ouvi na vida. 
Quando o som atravessou a longa distância e a tristeza encheu de sombras o azul do meu falso mundo, tu já tinhas saído do bar. Fiquei durante muito tempo a imaginar-te na penumbra ensombrada pelo fumo do tabaco, a voltares as costas ao piano, a caminhares até à porta dessa maneira lenta, grave e séria como caminhas sempre. E a olhares uma última vez para o céu. À procura das estrelas antes de entrares no carro e partires para uma outra espécie de noite. Ainda mais escura. 
Ouço todos os dias a música que compuseste nessa madrugada. E todos os dias te vejo fazer o mesmo percurso. Lento e grave e sério. E é sempre noite. E tenho a certeza que não havia uma única estrela naquele céu. 
Disseste que terias de morrer para poderes continuar a viver a tua vida. 
Mas só muito tempo depois percebi que não era uma simples figura de estilo. 
A música que criaste nessa noite, a que também é minha todas as noites, é a composição sonora da morte em vida. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A décima sexta casa


Cheguei há dois dias à minha nova terra e à minha décima sexta casa.
Cheguei sem alma.
Essa ingrata inimiga que ficou a pairar vazia sobre uma rocha perdida no meio do atlântico.
E que falta me tem feito a alma.
Os outros que o digam.

domingo, 16 de setembro de 2012

O rapaz da loja de fotografias também devia ser psicólogo

Queixo-me ao empregado da loja de fotografias que não tenho jeito para separar as fotos que, por erro meu ao carregar nos botões da máquina, foram impressas em conjuntos de duas.

O rapaz explica enquanto pega numa das fotografias e coloca a tesoura entre um rosto emoldurado por uma paisagem marítima e um outro com um jardim como plano de fundo:

- Põe-se a tesoura exatamente ao meio e corta-se com firmeza e sem hesitações.

Exibe-me, triunfante, dois autónomos pedaços de celulose com os nossos olhares definitivamente libertos um do outro.

Da importância do Bombay Sapphire na cicatrização dos tecidos

E assim subi (ou desci) todos os degraus da escala de Kubler-Ross, assentando os pés no patamar último da aceitação, com a satisfação interior de ter cumprido um programa que a psicologia estabeleceu para gente previsível e catalogada, como eu.
Não sei o que vem depois da aceitação. Espero que seja a amnésia e não o alcoolismo.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

The Lady of Shalott 3

The Lady Shalott


PART I

On either side the river lie

Long fields of barley and of rye,

That clothe the wold and meet the sky;

And thro' the field the road runs by

To many-tower'd Camelot;

And up and down the people go,

Gazing where the lilies blow

Round an island there below,

The island of Shalott.


Willows whiten, aspens quiver,

Little breezes dusk and shiver

Thro' the wave that runs for ever

By the island in the river

Flowing down to Camelot.

Four gray walls, and four gray towers,

Overlook a space of flowers,

And the silent isle imbowers

The Lady of Shalott.


(…)

Only reapers, reaping early

In among the bearded barley,

Hear a song that echoes cheerly

From the river winding clearly,

Down to tower'd Camelot:

And by the moon the reaper weary,

Piling sheaves in uplands airy,

Listening, whispers "'Tis the fairy

Lady of Shalott".


PART II

There she weaves by night and day

A magic web with colours gay.

She has heard a whisper say,

A curse is on her if she stay

To look down to Camelot.

She knows not what the 'curse' may be,

And so she weaveth steadily,

And little other care hath she,

The Lady of Shalott.


And moving thro' a mirror clear

That hangs before her all the year,

Shadows of the world appear.

There she sees the highway near

Winding down to Camelot:

There the river eddy whirls,

And there the surly village-churls,

And the red cloaks of market girls,

Pass onward from Shalott.

(…)

And sometimes thro' the mirror blue

The knights come riding two and two:

She hath no loyal knight and true,

The Lady of Shalott.


But in her web she still delights

To weave the mirror's magic sights,

For often thro' the silent nights

A funeral, with plumes and lights,

And music, went to Camelot:

Or when the moon was overhead,

Came two young lovers lately wed;

"I am half-sick of shadows," said

The Lady of Shalott.


PART III

A bow-shot from her bower-eaves,

He rode between the barley sheaves,

The sun came dazzling thro' the leaves,

And flamed upon the brazen greaves

Of bold Sir Lancelot.

A redcross knight for ever kneel'd

To a lady in his shield,

That sparkled on the yellow field,

Beside remote Shalott.


(…)

His broad clear brow in sunlight glow'd;

On burnish'd hooves his war-horse trode;

From underneath his helmet flow'd

His coal-black curls as on he rode,

As he rode down to Camelot.

From the bank and from the river

He flashed into the crystal mirror,

"Tirra lirra," by the river

Sang Sir Lancelot.


She left the web, she left the loom;

She made three paces thro' the room,

She saw the water-lily bloom,

She saw the helmet and the plume,

She look'd down to Camelot.

Out flew the web and floated wide;

The mirror crack'd from side to side;

"The curse is come upon me," cried

The Lady of Shalott.


PART IV

In the stormy east-wind straining,

The pale yellow woods were waning,

The broad stream in his banks complaining,

Heavily the low sky raining

Over tower'd Camelot;

Down she came and found a boat

Beneath a willow left afloat,

And round about the prow she wrote

'The Lady of Shalott.'


And down the river's dim expanse--

Like some bold seër in a trance,

Seeing all his own mischance--

With a glassy countenance

Did she look to Camelot.

And at the closing of the day

She loosed the chain, and down she lay;

The broad stream bore her far away,

The Lady of Shalott.


Lying, robed in snowy white

That loosely flew to left and right--

The leaves upon her falling light--

Thro' the noises of the night

She floated down to Camelot;

And as the boat-head wound along

The willowy hills and fields among,

They heard her singing her last song,

The Lady of Shalott.


Heard a carol, mournful, holy,

Chanted loudly, chanted lowly,

Till her blood was frozen slowly,

And her eyes were darken'd wholly,

Turn'd to tower'd Camelot;

For ere she reach'd upon the tide

The first house by the water-side,

Singing in her song she died,

The Lady of Shalott.


Under tower and balcony,

By garden-wall and gallery,

A gleaming shape she floated by,

Dead-pale between the houses high,

Silent into Camelot.

Out upon the wharfs they came,

Knight and burgher, lord and dame,

And round the prow they read her name,

'The Lady of Shalott'


Who is this? and what is here?

And in the lighted palace near

Died the sound of royal cheer;

And they cross'd themselves for fear,

All the knights at Camelot:

But Lancelot mused a little space;

He said, "She has a lovely face;

God in his mercy lend her grace,

The Lady of Shalott".


Poema de Lord Alfred Tennyson

The Lady of Shalott 2

The Lady of Shalott

Lembrei-me do poema de Tennyson durante a travessia em que deixei para trás uma ilha. Revestem várias formas, as torres isoladas de onde apenas nos é permitido ver o mundo através de um espelho. Já a maldição para quem quebra as regras é sempre a mesma. Como The Lady of Shalott, também eu conhecia as proibições sem conhecer as consequências.

Quadro de John William Waterhouse

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Manual para sobreviver ao amor mal vivido

Usarás os resquícios da Kierkegaardiana que há em ti para te absolveres. Recuperarás do lixo todo o teu lastro hedonista. Arrancarás as asas dos corvos que não te trouxeram sinais de agouro. Como Salomé, mandarás cortar-lhe a cabeça. Enfatizarás o pragmatismo. Embargarás a construção da casa e apanharás sol no jardim de ervas daninhas. Lembrar-te-ás que a humanidade nunca valeu nada. Aprenderás a confiar nas reservas mentais. Traçarás a verde o gráfico das tuas potencialidades. Comerás muitos bolos que não sejam feitos por ti. Concederás que ele conduziu a dança mas tu escolheste a música. Tornar-te-ás uma pessoa melhor. Viverás um minuto de cada vez.

Saberás que pode ser o primeiro.

domingo, 9 de setembro de 2012

Sim, sim, regressou a mania do domingo como dia de elevação espiritual...

Já Helena e Páris, ao contrário desses dois cobardolas do post aí abaixo, merecem ser celebrados com óperas e bailados.

Helena era casada com Menelau, anfitrião de Páris em missão diplomática, quando, apanhando o marido fora de casa, decidiu fugir com Páris para Troia onde viveram juntos e felizes até à morte deste, indiferentes ao facto de a sua decisão ter dado origem à mais célebre de todas as guerras.

Claro que Helena, revelando um elevado espírito prático que apenas a engrandece, voltou para o marido depois da morte de Páris.

Isto sim, é gente com admiráveis valores.

sábado, 8 de setembro de 2012

manhã de sábado na minha rua

As cadeiras da esplanada onde gastámos horas a alimentar pombos a migalhas de tosta mista ainda são as mesmas. E alguns dos empregados também. Agravaram o vagar nos gestos e a surdez aos apelos. Passaram-se doze anos. Havia miúdas que se sentavam sozinhas ocupadas com o telemóvel que agora se sentam com os filhos ocupadas em carrinhos de criança. Havia homens que liam o jornal indiferentes às mulheres que, sentadas ao lado, contemplavam o demasiado lento crescimento das árvores e que agora lêem o jornal indiferentes às novas mulheres que, sentadas ao lado, contemplam o demasiado lento crescimento das árvores. Uns mudaram-se para casas maiores na margem sul, libertando-se para sempre do problema do estacionamento e do chiar irritante dos elétricos. Outros morreram. Também é a mesma a cigana que me tenta vender o último modelo Prada de óculos de sol. Reconhece-me na impaciência de me livrar dela e acusa a visão do fantasma que talvez eu seja. Diz-me que às vezes se lembra de mim. Pergunto-lhe pela filha que adivinho suficientemente crescida para ter o seu próprio negócio de pedinchice. Responde-me sobre quatro outros filhos. Conta-me que o marido foi condenado e preso por tráfico de droga. Inocente, como não poderia deixar de ser. Diz que soube que o senhor doutor morreu num acidente com um avião. Um desperdício de homem. Rezou muito por ele. Hesito em denunciá-lo vivo no outro extremo da cidade. Sei que lhe fazem falta as rezas dela. Recuso-lhe a mão para que me invente uma sina melhorada. Compro-lhe um lenço que esqueço na mesa da esplanada e atravesso a rua em direção à casa que voltou a ser minha. Passaram-se doze anos. Diz-me o espelho grande do hall de entrada. Passaram-se duzentos. Responde-lhe o fantasma.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A psicologia sempre ao serviço do ego

De acordo com o modelo de Kubler-Ross os cinco estados da dor da perda são a negação, a raiva, a negociação, a depressão e a aceitação.

A um observador atento mas pouco informado e néscio nas matérias desta elevadíssima ciência que é a psicologia até poderia parecer que eu passei o dia de hoje a humilhar-me.

Ainda bem que adquiri esta informação a tempo de descobrir que, afinal, a única coisa que me aconteceu hoje foi uma catalogada manifestação da passagem pelo terceiro estado.

Agora já posso ir dormir descansada para amanhã acordar fresca e deprimida.

gente de moral duvidosa

Terminei de ouvir o Jane Eyre e fiquei desolada com a sordidez moral da estória.
É isto: depois de uma infindável série de desgraças a senhora apaixona-se. Foge do homem que ama porque se dá a irrelevante circunstância de ele ser casado. Um ano depois interioriza a irrelevância da coisa e decide procurá-lo. Reencontra-o viúvo mas ceguinho, sem uma mão e mau como as cobras. Vivem infelizes e miseráveis para sempre. Irrelevantemente casados.
Abstenham-se.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

da indesejável sofisticação da angústia

Há uns anos atrás vivi o meu momento existencial se parar caio. Em retrospetiva, convenci-me que a exaustão física auto imposta pelo instinto de sobrevivência era a mais triste forma de escravatura.

Agora, fui apresentada ao momento existencial se me ouvir enlouqueço. Vários áudio livros depois e com a Jane Eyre quase virada (porque o sucesso do método depende da capacidade de aborrecimento dos livros) dou por mim a ter saudades dos dias em que a minha mente era suficientemente manipulável para se deixar enganar pelo esforço físico.

Sanatório de almas

Em trânsito, entre uma terra que já não é minha e uma outra que ainda não o é, fica Lisboa.

Essa amante que, por não ter memória, nos perdoa todas as infidelidades.

sábado, 1 de setembro de 2012

31 over the blue moon

Faltei ontem ao encontro que foi a verdadeira razão do meu regresso aqui. E embora a baía tenha ficado vazia na imobilidade absoluta e na estranheza da ausência dos nossos prometidos corpos a dançar na sombra da lua, essa, a lua azul, foi a única que, indiferente ao desamor dos amantes, se manteve fiel ao compromisso de aparecer.
Era uma lua especial que, por ser azul, só voltará a aparecer lá para o verão de 2015. E por isso, o nosso desencontro debaixo dela não tem a dimensão das coisas que se adiam, por exemplo, por uma lua, mas antes das coisas que, por não se poderem repor na brevidade, estão condenadas a perderem-se para sempre.
Mas a lua não brilhou apenas na baia vazia. Brilhou também, azul, por cima da minha cabeça quando abri a janela do quarto para conseguir respirar. Também era azul a musica que se tocava por baixo da minha janela e que a par com a lua entrou dentro do quarto para me hipnotizar com a ilusão de que no som do baixo que preenchia os blues, estavam os teus dedos de encontro às cordas.
Depois calaram se os blues, a lua perdeu-se no ocaso e as tuas palavras no meu telefone pariram um amanhecer vazio e mais um dia nado morto.