domingo, 30 de junho de 2013

Dói-me o estômago



Começo a desconfiar que Andhrimnir, como cozinheiro, pode ter sido um terrível erro de casting. Para dizer a verdade, quando o vi na rua, nas suas vestes de homem estátua Pirata, imóvel, rodeado por um bando de miúdos ingleses aterrorizados, fiquei tão entusiasmada que o recrutei imediatamente para a função que me fazia mais falta, sem quer me ocorrer perguntar-lhe se sabia cozinhar. 
Habituada às manias e desmandos dos chefes de cozinha, ainda esperei algumas refeições para lhe explicar que Nestum com mel não é propriamente aquilo que se espera de um cozinheiro Pirata num navio em contamos viver, se não no luxo, pelo menos, dentro dos parâmetros de uma elegância muito civilizada. 
Andhrimnir não ficou ofendido com as minhas reclamações, mas adiantou-me a justificação que eu mais temia. Veio para esta vida para torturar pessoas e, por enquanto, ainda só me tem a mim e ao papagaio e eu proibi-o de continuar a arrancar penas ao bicho emprestado (logo a seguir ao tribunal europeu dos direitos do homem, o que mais temo são as organizações de defesa dos direitos dos animais).
Obriguei-o a passar a manhã na cozinha a ensaiar as receitas do livro da Vaqueiro mas, quando me viu cuspir o resultado, atirou com um prato Vista Alegre ao chão e plantou-se no mastro, a fazer de estátua, de onde diz que só sai depois de eu lhe comprar uma bimbi. 
Não sei se aguento mais dois dias sem diretor de departamento de recursos humanos.
Raios partam os vikings. 

Comunicações Intergalácticas



Dizer-te que o verão chegou e grita-se bolas de Berlim com creme nas praias cheias e as pessoas, de alguma forma, parecem felizes assim esticadas na areia e entrincheiradas numa panóplia de coisas de plástico que carregam consigo debaixo do sol tórrido e por cima das solas dos pés escaldados. Se ao menos algum dia te tivesses lembrado de comprar um chapéu de sol, ou uma toalha de praia, que fosse, talvez tivesses engolido o mesmo apaziguamento. Não estou segura que não sejam essas coisas que salvam a vida às pessoas. Baldes encarnados com peixinhos a morrer lá dentro, conchas vazias em cima de uma toalha oferecida por uma marca de cosméticos e derme inflamada podem ser a receita que nos garante o cumprimento da obrigação de uma morte feita de causas naturais. 
Não sei se aí, onde te foste enfiar para te veres livre de nós, há verões de bolas de Berlim com creme ou se se vive uma irritante primavera eterna de vales verdejantes e coelhos brancos que nos vêm lamber os pés. Antes de morreres tinha a certeza que não havia nada, mas o nada é um local demasiado inóspito para se estar e agora sei que a fé é, sobretudo, uma matrícula na colónia de férias inventada que os homens pagam para terem para onde enviar os que já não cabem nos seus dias. 
Dizer-te, ainda, que se vai vivendo aqui em baixo. Toma-se banho e come-se e trabalha-se e ouve-se música e lêem-se livros e compram-se muitas coisas. Os ponteiros de todos os relógios vão dando várias voltas e os dias caem dos calendários e por mais que o tivesse tentado nem sequer consegui impedir o verão. 
- Espera dois meses que isso passa. 
Dir-me-ias em tom sério e com a expressão sisuda e antipática com que usavas afastar os meus momentos drama queen.
E, claro, terias razão. Esperar que o tempo passe sempre foi a principal actividade dos homens. 
Mas são aqueles que anseiam que o tempo lhes leve a memória que a praticam com maior angústia. 


sábado, 29 de junho de 2013

Superioridade moral




Laranja Mecânica (Clockwork orange, Stanley Kubrick, 1971), no seu equivalente  a visitas de estudo obrigatórias a Auschwitz por parte de uma certa direita alemã, é o filme que todos os insiders do sistema  judicial deveriam ter em casa e ser obrigados a rever anualmente, para que não lhes seja possível esquecer uma série de coisas que preferimos acreditar que já saibam, mas que a gestão quotidiana dos problemas tende a deixar esmorecer num perigoso segundo plano.
Não falo apenas da moral imediata do filme, que são os perigos do experimentalismo psicológico na recuperação da delinquência ou a ideia simultaneamente romântica e aberrante de que é possível extrair de dentro das pessoas os seus impulsos para o mal.
A montante da moral imediata, o filme mostra uma outra que é muito mais importante do que a primeira. O sistema escolhe, mais ou menos aleatoriamente, uns para serem seus guardiões e outros para seus guardados. Mas as pessoas, essas, não deixam de partilhar a mesma natureza e apenas ocupam uma ou outra posição no tabuleiro em virtude de uma série de circunstâncias que são ocasionais e temporárias.
Só a consciência permanente dessa álea nos pode salvar dos desastres de um sistema mecânico, posto ao serviço da área onde o humanismo faz mais falta. 

Vem isto tudo a propósito do facto de eu "ir para Pirata".  

sexta-feira, 28 de junho de 2013

15 days to go

A quinze dias do fim, lembro-me que nas minhas missões, como nas guerras, as etapas mais perigosas são sempre o início e o final.

de dentro da caixa de música


Nem sei que impressão me causam as indecorosas notícias da tua infelicidade. A tristeza não endémica é uma mancha de óleo que alastra em chão branco. Toda a gente a nota. 
Se ainda falasse a linguagem do mar, dir-te-ia que é pela mão dos que nos amam que a vida deixa de nos pertencer. 
Que perdeste o direito de ser infeliz. 
Que não foi para isso que agrilhei os meus pés ao mecanismo giratório desta claustrofóbica caixa de música.
Mas as bailarinas de plástico são mudas. Vivem concentradas no esforço de girar ao ritmo de três acordes repetidos até à náusea. 
E nem sequer sabem que impressão lhes causam as indecorosas notícias da tua infelicidade.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Andhrimnir, o cozinheiro Pirata *



Entreguei a casa ao senhorio e mudei-me para o barco. A bandeira assustadora que não paguei aos designers foi hoje colocada no mastro onde, neste instante, abana ao ritmo da brisa suave de final de dia. É de tal forma aterrorizadora que os donos das embarcações vizinhas passaram a tarde à procura de lugares distantes na marina e alguns já decidiram zarpar para paragens mais seguras. A bandeira custou-me o ultraje da retirada de um convite para jantar num iate de uns ingleses que agora já não querem estabelecer relações sociais comigo. Na primeira meia hora fiquei algo dececionada por perceber que os ingleses não têm a mente tão aberta à pirataria como seria de pensar. Mas depois lembrei-me que vim para esta vida para aterrorizar pessoas e não para fazer amigos e, rapidamente, desfiz-me de veleidades e estabeleci um plano para me vingar da desfeita dos ingleses aproveitando o facto de me terem confiado os seus planos de navegação para os próximos seis meses quando ainda pensavam que era uma pessoa de bem. O iate deles será a primeira embarcação que abordaremos.
Venci os problemas da escassez de inscrições colocando um anúncio discreto num estabelecimento prisional. Afinal, não há que ter escrúpulos nesta matéria já que, de uma forma ou de outra, no dia em que partirmos, seremos todos ex-reclusos de alguma coisa. O problema é que estabeleci um sistema de quotas para grupos sociais desfavorecidos por não me querer indispor com o tribunal europeu dos direitos do homem e agora estou com dificuldades em arranjar um anão. Já consultei o calendário estival de festas e, em último caso, raptaremos um ao Circo Chen. 
Por enquanto, ainda ocupo o navio sozinha com Andhrimnir, um viking que trabalhava como homem estátua e que se ofereceu para cozinheiro em troca da possibilidade de torturar pessoas, e Polly, o papagaio que pedi emprestado para nos servir de mascote depois de ter lido um livro sobre a importância das mascotes na fomentação do espírito de grupo.
Os laços de dependência que Andhrimnir criou com Polly foram imediatos. Hoje quis servi-lo duas vezes. Primeiro, ao almoço, com molho bechamel e, depois, ao jantar, com molho de cebolada.
Aguardo com a ansiedade o início da segunda semana de julho, altura em que largaremos amarras e nos tornaremos,  a sério e para sempre, Piratas.

* E Polly, o papagaio emprestado.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Há céus que são violentos



I've seen you all along
The place they called home

Coming down beneath the violent sky

These skies were happy kids
The music going loud
To move here under the cloud of screaming




segunda-feira, 24 de junho de 2013

Para fazer as pazes com a lua...



... deve escolher-se uma que seja suficientemente especial para valer por si.

domingo, 23 de junho de 2013

O amor de um cobarde


O amor de um estúpido, por ser infundado e necessariamente volátil, pode valer muito pouco. Mas em matéria de indignidade dos sentimentos, não há nada pior e mais inútil do que o amor de um cobarde.

Lições


A lição que aprendi é que nem sempre é possível regressar a casa.
Por mais clean, branca e sólida que a tenhas construído. 
Talvez seja ainda mais verdade quanto mais clean, branca e sólida for a casa que construíste. 
Tendemos a pensar que pode voltar-se as costas às realidades paralelas e regressar incólume àquele ponto de intersecção onde antes escolhemos o caminho da esquerda. 
Não é assim.
Há lugares, há pessoas, há coisas que têm o misterioso poder de nos alterar a substância. Para sempre.
E um dia queres voltar a casa e percebes que isso já não é possível. 
Está lá tudo, como deixaste.
Mas faltas tu.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Do verão

Aquilo que interessa.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

terça-feira, 18 de junho de 2013

Cuca, a Pirata

Contava adquirir (é propositada a neutralidade do verbo) a embarcação indispensável aos desígnios da Pirataria numa feira chamada Nauticampo. Mas avisaram-me que, além de não se realizar por estes dias, não costumam lá ter expostos para venda barcos com a dimensão necessária para albergar condignamente uma tripulação Pirata. 
Depois de umas negociações falhadas com a Costa Cruise, acabei por aceitar uma daquelas ofertas que as financeiras tão gentil e insistentemente me enviam para a caixa do correio e fiz um leasing para aquisição desse barquinho da fotografia. O processo foi tão incrivelmente simples que, não se desse o caso de eu ser portadora de uma obstinação patológica, teria abandonado o projeto da Pirataria para me dedicar à menos original, mas ainda assim lucrativa, burla de locadoras. 
Dez assinaturas em papelinhos com letras tamanho cinco depois, ofereceram-me o barquinho e ainda me serviram um café.  
Claro que quando se vencer a primeira prestação, já eu e a minha tripulação teremos zarpado para os mares do sul, onde estaremos demasiado ocupados a aterrorizar toda a gente para ter tempo de assinar citações do tribunal. 



segunda-feira, 17 de junho de 2013

sábado, 15 de junho de 2013

de leitura obrigatória




"In short, one may say anything about the history of the world--anything that might enter the most disordered imagination. The only thing one can't say is that it's rational. The very word sticks in one's throat. And, indeed, this is the odd thing that is continually happening: there are continually turning up in life moral and rational persons, sages and lovers of humanity who make it their object to live all their lives as morally and rationally as possible, to be, so to speak, a light to their neighbours simply in order to show them that it is possible to live morally and rationally in this world. And yet we all know that those very people sooner or later have been false to themselves, playing some queer trick, often a most unseemly one. Now I ask you: what can be expected of man since he is a being endowed with strange qualities? Shower upon him every earthly blessing, drown him in a sea of happiness, so that nothing but bubbles of bliss can be seen on the surface; give him economic prosperity, such that he should have nothing else to do but sleep, eat cakes and busy himself with the continuation of his species, and even then out of sheer ingratitude, sheer spite, man would play you some nasty trick. He would even risk his cakes and would deliberately desire the most fatal rubbish, the most uneconomical absurdity, simply to introduce into all this positive good sense his fatal fantastic element. It is just his fantastic dreams, his vulgar folly that he will desire to retain, simply in order to prove to himself--as though that were so necessary--that men still are men and not the keys of a piano, which the laws of nature threaten to control so completely that soon one will be able to desire nothing but by the calendar. (...) If you say that all this, too, can be calculated and tabulated--chaos and darkness and curses, so that the mere possibility of calculating it all beforehand would stop it all, and reason would reassert itself, then man would purposely go mad in order to be rid of reason and gain his point! I believe in it, I answer for it, for the whole work of man really seems to consist in nothing but proving to himself every minute that he is a man and not a piano-key! It may be at the cost of his skin, it may be by cannibalism! And this being so, can one help being tempted to rejoice that it has not yet come off, and that desire still depends on something we don't know?"

Fiodor Dostoievski, in, Notes From the Underground

Eurídice - Na vida real não há romãs


Mandam as insondáveis razões de coerência, que as semanas horríveis terminem em noites de sexta-feira monocromaticamente horrorosas.
Já tinha disciplinado o cérebro para que não se expusesse ao risco do sonho e se limitasse a cumprir, espartilhado, a sua missão de me deixar dormir. A liberdade do sono é um exclusivo dos que nada têm a temer de si próprios e eu não faço parte desse grupo de privilegiados. 
Mas esta semana todos insistem em desobedecer-me e até o meu próprio cérebro aderiu à última tendência fashion do verão que é a rebelião desorganizada contra as estruturas do poder instalado. 
Passei dois terços da noite convencida que ainda vivia numa Ilha e, na violência do pesadelo, pensei tratar-se de um sonho.
Devo ter sido feliz. 
Eram os tempos da inocência em que Orfeu tocava uma lira de melodia doce, Eurídice ainda não tinha sido mordida pela serpente e nenhum dos dois jogava ao galo nas escuras paredes de Hades. 
No último terço, sonhei que a realidade traiu a mitologia. Na vida real não há romãs. Foi a Eurídice que Hades impôs a condição de não poder olhar para trás sob pena de deixar Orfeu, para sempre, enclausurado no reino dos mortos. Em troca, nada mais do que a salvação do único que ainda podia ser salvo. Aquele que não pertencia às caves subterrâneas e só ali chegou em condenada missão de resgate. Na vida real não há romãs.
Caso a subtileza do meu relance não tenha passado despercebida aos deuses, espero que a traição seja relevada pela rebeldia involuntária dos sonhos. 
Orfeu viverá. Nem que isso me custe os olhos. 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

publicidade dirigida


Não sei se são os resquícios da misoginia que grassa por aí ou se às minhas qualidades como futura capitã Pirata falta aquela evidência que costuma ter o condão de arrastar massas. A verdade é que já abri o concurso há mais de vinte e quatro horas e ainda não tenho meios humanos suficientes para constituir uma tripulação capaz de espalhar o medo pelos mares e dominar o mundo.
É certo que nada me demoverá e já decidi que, em último caso, sequestrarei voluntários. Ainda assim, conhecendo eu a importância da diplomacia no ambiente de trabalho e tendo um historial maníaco na intransigente defesa dos direitos humanos, preferia que esta empreitada fosse constituída apenas por pessoas mais ou menos livres.


Lamento alguma agressividade no tom, mas hão-de compreender que isto não é coisa para meninos.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

weirdless

A rede wireless também serve para deixar a nu os problemas de auto-estima dos nossos vizinhos.
Já achava estranho haver quem se identificasse como "casadinho" mas, recentemente, mudou-se para o prédio um tal de "poucochinho".

dois rufias

Destacados sobre um fundo de paredes celestes ou de céu alto, dois rufias cingidos em séria roupa negra bailam com sapatos de mulher uma dança solene, que é a das facas iguais, até que de uma orelha salta um cravo porque a faca entrou num homem, que fecha com a sua morte horizontal uma dança sem música. Resignado, o outro ajeita o chapéu e dedica a sua velhice à narração desse duelo tão puro. Esta é a história pormenorizada e total da nossa maldade. (...)

Jorge Luís Borges, in História Universal da Infâmia 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Projeto Pirataria




Há coisas que uma mulher tem de estar preparada para enfrentar quando decide abandonar tudo para tornar-se Pirata.
Acredito que tenho feito um bom trabalho de preparação para iniciar a minha nova vida de delinquente dos mares e que tenho competências que garantirão o êxito da empreitada.
Depois da estopada do Moby Dick, não deve haver nada que eu não saiba sobre a vida a bordo de um navio cheio de gente sem escrúpulos. E se é provável que existam algumas diferenças relativamente ao meu atual meio profissional, a verdade é que, neste momento, só me ocorre a óbvia instabilidade do solo.
A falta da televisão, aquilo que poderia ser um verdadeiro problema, já foi contornada pelos últimos três meses de absoluta abstinência televisiva.  
Também já consegui aprender a cuidar do cabelo e das unhas sem assistência de terceiros. Claro que, em alto mar, o sal dificultar-me-á a tarefa e suspeito que escovas elétricas estarão fora de questão. Penso contornar essa situação aderindo à moda rastafari que, ao dar-me um certo ar caribeno, só pode contribuir para aumentar a minha credibilidade e potenciar a fama. 
A fama, na carreira de Pirata, não é coisa de somenos importância nem serve apenas para alimentar egos deficientes. A fama far-nos-á poupar em munições e esforços. É imperativo criar uma reputação terrorista que granjeie algumas rendições instantâneas perante a simples visão da nossa bandeira.
Já a pensar nisso, contratei uma equipa de designers, com formação mista em psicologia do terror que, nos próximos dias, se encarregará de criar um logotipo inconfundível e deveras assustador. 
Não lhes vou pagar nada. Enganar os designers será o meu primeiro ato criminoso e contribuirá para a adaptação ética à profissão que decidi abraçar.
Outro problema, em abstrato, poderia ser a alimentação. Mas eu já tive início de escorbuto quando fui anorética e, desses tempos, além de uma admirável indiferença orgânica às carência alimentares, guardei um stock de vitamina C que, apesar de fora de prazo, ainda está em excelentes condições de ser consumido. 
Num plano mais técnico, preocupa-me o facto de não ter carta de marinheiro nem navio.
No entanto, isso da carta não passa de um resquício obsoleto de uma mente legalista. Uma vez Pirata, as minhas relações com a polícia marítima não vão chegar a um nível de intimidade que lhe permita a ousadia de me fiscalizar.
Quanto ao navio, tenho ideia que é nesta altura do ano que se costuma realizar aquela feira chamada Nauticampo. 
As candidaturas a tripulante, acompanhadas dos respetivos curriculos e sem fotografia, para não dar falsas ideias a ninguém, deverão ser enviadas até ao final deste mês. 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A trinta dias de mais um final

Reconheço este sentimento de inquietude. 
Significa que está na altura de mudar de terra.

sábado, 8 de junho de 2013

?????????



Precisei voltar ao Wonderland para expor à lagarta que sabe tudo o problema do mau conto que me persegue. É um conto ruim, de história pobre, estrutura fraca, linguagem requentada e metáforas ordinárias. Sempre que o editor de texto me põe à frente uma imagem branca lá está o conto a ocupar-me o espaço e o tempo. A construir-se nas linhas do meu desprezo e encher-se páginas de contrariedade. 
A lagarta inalou o fumo e olhou para o céu com uma expressão mista de impaciência e nostalgia
- Não podes fazer nada sobre esta proibição do tabaco verdadeiro? Estou farta de fumar chá…
- Talvez. E o meu problema?
Mais um olhar para para o céu, mas agora só de impaciência.
- O que é que já tentaste?
- Para me livrar dele? escrevi-o, claro.
- E continua a aparecer-te? 
- Sempre.
- Tens um problema grave. Tivemos aqui uma situação parecida há uns anos. Um marinheiro com uma obsessão doentia por uma baleia que…
- isso foi no Melville.
A lagarta atirou o cachimbo ao chão furiosa e fixou-me irritada.
- E como esperas que te resolva os problemas com esta porcaria de tabaco de água que me dão para fumar? 
- Já te disse que vou ver o que posso fazer…
- Não chegaste a dizer. Talvez seja esse o problema com o mau conto que te persegue. 
- O implícito?
- dois, três e quatro são nove. Deves fazer como fizemos no caso do marinheiro. Esvazia o mar. 
- Ou seja?
- E isso do tabaco, como é que fica? O dealer era o chapeleiro louco. Desapareceu por tua causa. Isto é tudo por tua causa. Nunca te devíamos ter deixado entrar.
-  Vou-te propor um estatuto de exceção. Agora explica-me como é que esvazio o mar?
A lagarta apanhou o cachimbo no chão e começou a esfregá-lo de encontro ao peito enquanto o olhava como se estivesse à espera que dele saísse o génio do Aladino.
- Apaga o conto hoje mesmo e não escrevas mais uma linha enquanto ele não desistir de ti. Não se negoceia com terroristas. 

Achei que era uma solução muito razoável. 

destinatário desconhecido no local



No início da primavera, chegou a carta. 
Tinha-a esperado durante muitos meses. Passou horas a imaginar o momento em que alguém entraria com aquela carta na mão. Treinou a expressão desinteressada com que a olharia. O gesto casual com que estenderia a mão para a receber. Pensou na curta conversa de circunstância que teria de fazer para que não transparecesse a avidez pelo momento a sós. Convenceu-se que a carta chegaria numa segunda-feira e os domingos do inverno foram aquecidos pela antevisão de um envelope no dia seguinte. Mas aos domingos, seguiu-se a desilusão de segunda-feira. Sem que se saiba dizer quando, acabou por lhe perder a esperança.
Uma tarde, no regresso do almoço, encontrou-a já nascida e autónoma no meio da secretária. O envelope era branco e extraordinariamente imaculado, considerando a distância que teve que percorrer até chegar às suas mãos. Primeiro, analisou-lhe as datas dos carimbos, como se a única explicação possível fosse a carta ter-se perdido no circuito da distribuição postal e ter dado a volta ao mundo várias vezes até lhe ser entregue. Depois, tomou-lhe o peso e adivinhou-lhe três páginas. Ficou a olhar para ela durante uns minutos e decidiu que só a deveria abrir fora dali. Talvez em casa. Talvez numa praia deserta que lhe desse a dignidade dramática que merecia. 
Enfiou-a entre as páginas da agenda decidida a, naquele dia, sair mais cedo para se dedicar à atividade de ler a carta.
Mas esse dia prolongou-se pela noite e decidiu abri-la apenas no dia seguinte.
E no dia seguinte decidiu o mesmo. E no outro, e no outro e no outro.
A carta continuou fechada dentro da agenda onde desempenhou a útil função de marcador de todas as segundas-feiras.
Até ao dia em que, quando a ia fazer avançar mais uma semana, ficou parada a olhar para o seu nome escrito naquela caligrafia inclinada e decidida e percebeu, finalmente, a verdadeira razão pela qual não a abriu. 
A carta chegou muito depois de a verdadeira destinatária ter partido, levando consigo a mensagem do silêncio, que foi aquela que, em tempo, recebeu.
Não ler correspondência de outras pessoas é um escrúpulo. Não entregar recados a quem já não é deste mundo, um princípio de sanidade.
No desinteresse em devolvê-la ao remetente, atirou-a ao lixo.
Foi a mais eloquente carta de amor que nunca ninguém recebeu. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Heartless coward bird of beak, when life is too short to speak



honestidade compulsiva

Sempre que recebo um daqueles mails da Louis Vuitton fico na dúvida se não teria o dever de responder e explicar-lhes que não, agradeço muito, mas agora já não.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Chess pieces




Quando os nosso olhos se cruzam e exibes o teu ódio catapultado para expoentes de contenção física impossível, encontras os meus esvaziados de expressão.
Cerras com a boca a raiva que te corta até à carne e a minha abre-se para te oferecer meio sorriso.
Ambos já fizemos este jogo várias vezes. Tu com pessoas iguais a mim e eu com pessoas iguais a ti. Conhecemos de cor as regras e ajeitamos o corpo ao tabuleiro. Tu terás de perder. Só um dos dois pode dominar o espaço desta sala e é melhor para todos para seja eu. 
Até tu precisas dessa certeza.
Levas a mão à cabeça e simulas discretamente o gesto de um tiro na tua, que é a minha, têmpora. 
Encosto-me para trás na cadeira, aumento o sorriso sem nunca deixar de te olhar e não te digo uma palavra. Sacudo com a mão o sangue imaginário que me escorre pelos cabelos. 
É nessa altura, quando te devolvo o medo intacto, que percebes que já perdeste. 
Hás-de sair da minha sala vergado pelo peso do ódio que te sobra nos cofres. 
Nas tuas costas, desfaço-me da minha inútil máscara de vazio.
No fim de tudo, fica o som das vozes das mulheres que gritam o seu amor de encontro à tua indiferença. E fico eu, a sofrer com elas o eco daquilo que se perdeu em ti. 
E é nesses momentos, e apenas nesses momentos, que tenho a certeza que cada um de nós ocupa o lugar certo no tabuleiro.
Levo a mão à têmpora para fechar o buraco do tiro.

terça-feira, 4 de junho de 2013

são piratas são. são homens perdidos. não sabem que este medo vem do chão.



Pensando bem, uma alternativa a tornar-me missionária em África, com a vantagem de alguma originalidade e sem os riscos de contribuir para a ruína de almas puras, poderia passar por roubar um navio, recrutar uma tripulação e dedicar-me à pirataria. 
Acho mesmo que seria uma empreitada de sucesso garantido.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

domingo, 2 de junho de 2013

Anne Bonny, esse modelo de sapiência


Anne Bonny, a pirata, essa senhora de elevadíssimo espírito moral, de quem nunca tinha ouvido falar mas que agora prometo não mais esquecer, é o verdadeiro role model do universo feminino. Uma precursora na arte do justo tratamento do sexo oposto. O guru da frase de despedida ao amante que se deixou apanhar numa noite de bebedeira.
Penso nas bonitas últimas palavras que dirigiu ao seu amante, imediatamente antes da execução da sentença de enforcamento, e não posso deixar de pensar que é deliberada a contribuição do ocidente para a deseducação feminina, e consequente extinção masculina, ao omitir dos curriculae os ensinamentos que esta senhora tem para nos dar. 
Amputam-nos a alma com a ousadia cândida de uma shakespeareana Julieta apaixonada, com a Austeniana paciência estóica de gente chamada Emma, Elinor, Elizabeth, com a dignidade conformada da tennyssoniana Lady of Shalott. Ensinam-nos que acabam mal as insatisfeitas Karenina de Tolstoi, Bovary de Flaubert, Nana de Zola e até a pobre da Scarlett O'hara que nunca quis mais que uns vestidos bonitos e um homem lhe desse atenção.  
Escondem-nos Anne Bonny, a mulher que já em 1720, deu o seu exemplo na luta contra a androginia masculina, que é a forma mais elegante que arranjei para dizer mariquice, tratando o homem que amava da maneira como ele tem que ser tratado.

"Se te tivesses batido como um homem, não te enforcariam como um cão".


Depois mandou uma mensagem ao pai, advogado rico, que a livrou a ela da forca.

É de um pragmatismo visionário.
Não via nada tão poético desde que Salomé exigiu a cabeça de João Baptista. 

Grandes filósofos

"Se te tivesses batido como um homem, não te enforcariam como um cão".

Anne Bonny, a mulher pirata, "citada" por Jorge Luís Borges, in "História Universal da Infâmia"

foi assim...não foi assim...




- Vês cão, olha ali aquele casal tão fofinho a fazer um piquenique na relva.
- Emanas uma energia invejosa que me deixa perplexo e preocupado.
- Oh, vê como a felicidade pode ser tão simples.
- E barata. Já te aflorou o espírito a ideia de que ele pode não ter dinheiro para a levar a um restaurante?
- Estragas sempre tudo, cão.
- Só mobiliário sueco. Sempre respeitei a cómoda herdada. 
- Podia ser feliz com um homem que me fizesse um piquenique num jardim no meio da cidade.
- A minha percepção canídea diz-me que te perdeste neste jardim na primeira vez que vieste aqui comigo. Ora, vivendo tu aqui ao lado, é legítimo concluir que essa fase bucólica-romântica é recente e passageira.
- Percebes pouco da natureza humana, cão. Um humano pode evoluir com as experiências anteriores e constatar que só na simplicidade pode encontrar a magia de um coração puro.
- E essa epifania surgiu, assim, subitamente? Diante da visão de dois jovens de esquerda a comer comida de lata, em cima de uma toalha de praia?
- A evolução, cão, faz-se pela substituição dos quadros mentais anteriores.
- Sim, sim. Mas agora, se não te importas, antes que o processo se conclua e cheguemos à fase do parque de campismo pulguento, leva-me a jantar a um sítio decente e bem frequentado. De preferência, daqueles onde não deixam entrar os outros cães. Dona.
- És um snob, cão. Não imagino com quem possas ter aprendido essas manias…

sábado, 1 de junho de 2013

Não gosto


Não gosto das duas da tarde nos domingos de verão junto ao mar. Não gosto do cheiro a cemitério que há nos blogues abandonados sem mensagem de despedida. Não gosto dos meus dedos dos pés quando saem da banheira. Não gosto do sabor do gengibre misturado com coisa nenhuma. Não gosto da sensação do fumo a passar pela garganta inflamada. Não gosto do som dos travões dos comboios sobre os carris. Não gosto do cheiro das salas cheias de pessoas. Não gosto das fitas encarnadas e brancas que delimitam cenários. Não gosto de mergulhar dentro das lagoas escuras das grutas. Não gosto da sensação do cobre sobre a pele. Não gosto do ruído de fundo do aeroporto Madrid-barajas. Não gosto de tocas de banho. Não gosto que demorem mais de uma hora a devolver-me as chamadas. Não gosto de mexer em papéis envelhecidos. Não gosto de vestir jeans lavados. Não gosto da expressão do rosto dos mortos aprisionados em fotografias. Não gosto de entrar na casa de banho das outras pessoas. Não gosto da pimenta no puré de batata. Não gosto das janelas trancadas nos hotéis. Não gosto do som dos tremores de terra. Não gosto da areia entre os pés e os sapatos. Não gosto de cabides vazios. Não gosto de bonecas de porcelana. Não gosto de narradores que se dirigem diretamente aos leitores. Não gosto de conversar nas galerias de arte. Não gosto do som do fecho das algemas. Não gosto que me ofereçam flores. Não gosto do espaçamento dos parágrafos nos livros. Não gosto dos gritos histéricos das gaivotas. Não gosto do olhar de solidão dos velhos. Não gosto de ouvir o som da minha voz nas gravações. Não gosto de restaurantes self-service. Não gosto das seis da tarde nos dias de inverno longe do mar.