sexta-feira, 5 de julho de 2013

O vento sudoeste


Hoje acordámos todos loucos. 
Com os primeiros raios de sol, os gritos histéricos das gaivotas rebentaram-me no peito e incendiaram-me com a incerteza se vinham de fora ou nasciam por dentro. Vi os meus dedos dos pés retorcidos de unhas vermelho sangue e o espelho da casa de banho devolveu-me a miúda de franja que devo ter sido aos dez anos de idade. Ficou sentada no cesto da roupa suja a olhar para mim com desdém. 
Ainda antes de abrir a porta, o vento entrou pelo buraco da fechadura e fez bater todas as janelas da casa que se transformaram em mariposas de vidros blindados a esvoaçar de encontro à liberdade.
Lá fora, o vento já tinha levado os chapéus das esplanadas e trazido o lixo dos homens que se lhes enrolou à volta dos sapatos como se fosse uma cauda gigante composta por todas as coisas que se querem esquecer. As crianças gritavam de horror, talvez com desdém dos rostos sem franja que se tornarão daqui a poucos anos. Passei por um grupo de pessoas que se contorcia de encontro aos postes da eletricidade e entrei no café de todos os dias, fazendo um esforço para esconder os dedos dos pés ainda retorcidos. Serviram-me um chá a escaldar na concha da mão.
Entrei na garagem do edifício onde gasto os dias, fazendo, por pudor, um esforço para não ver ninguém. Mas pelo canto do olho, apercebi-me que havia homens pendurados nos candeeiros e mulheres com a pele dos braços arrancada e apenas um olho pintado.
Dentro do meu gabinete as persianas gemiam ao ritmo do vento como carpideiras debruçadas sobre caixões abertos. Tentei fechar as janelas para me livrar de todos os sons e da miúda da franja, a olhar para mim com desdém. Mas o vento fez-me refém dessa cauda feita do lixo que se quer esquecer.
Salvou-me o meu secretário, homem do mar e conhecedor dos mistérios da vida, que, com os olhos postos nos meus dedos dos pés, ainda retorcidos, apressou-se a explicar-me.
- É o vento sudoeste, Senhora. Não ligue. Vamos andar todos loucos durante três dias.

2 comentários:

  1. O Lips amaluca tudo um bocado... penso que é por vingança , por lhe terem dado nome de mafioso...

    ResponderEliminar