sábado, 26 de outubro de 2013

Comunicações inter-galácticas

Ontem vi-te na rua, dois quarteirões a sul da porta onde nunca passo para evitar o teu reflexo no vidro grande da entrada. 
Era o teu andar desengonçado, esse jeito de voltar o pescoço para as nuvens, uma mão com a palma para cima, o sorriso trocista de quem acabou de relevar a última asneira que fez, o cabelo há três semanas a implorar por um corte e os passos como que demasiado pequenos para pernas tão altas.
Vi-te atravessar a dez metros da passadeira e quase ser atropelado e fiquei aliviada por teres sobrevivido.
Percebi que a tua morte foi um embuste. Uma paródia da qual todos os dias te ris de boca aberta sentado no sofá verde (era verde não era?) da casa a cuja porta nunca passo para evitar o teu reflexo no vidro grande da entrada.
Percebi que passaste os últimos quase dois anos a rir de nós, a espreitar-nos das esquinas, distraído com as passadeiras, quase a ser atropelado, a observar as nossas vidas, a ler as nossas palavras, a reprovar as minhas olheiras, a gozar  a nossa dor. A escrever os teus poemas.
Dizem-me que era outra pessoa. Um homem parecido com o que te parecerias hoje se hoje ainda te parecesses com alguma coisa. Dizem-me que morreste e que foi o teu corpo que o rio vomitou numa manhã mais fria do que todas as outras. Dizem-me que desapareceu para sempre o teu reflexo do vidro grande da entrada da porta onde nunca passo. Que se te acabaram os poemas.
Mas ontem vi-te e sei que a tua morte foi um embuste e só espero que não sejas atropelado. 
E que cortes esse cabelo.



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