domingo, 3 de novembro de 2013

de leitura obrigatória a espíritos inquietos

"Depois num registo apaixonado, porém amargo:

Da tua vida, Ofélia, basta-me o brilho da felicidade: o desejo insensato de haver alguém que me ama. Pequenas são as coisas que sentimos quando possuímos mais capacidade para as rejeitarmos. Este bom homem que julgas que eu sou não é senão um silêncio infantil que apenas deixou escapar um rumor dilacerado. Por ti não reflicto em nada, e todas as minhas palavras se destinam ao fogo dos teus lábios. Aceitar-te é confessar que estou perdido e que estranhos caminhos procuram os meus passos. A vida e o amor, o leito bem aconchegado, a postura mais natural para logo depois ser um pecado, o chapéu fora do lugar, o defeito e a virtude, na alegria e na tristeza e na palavra nunca eu haveria de ser perfeito, continuamente digno da tua companhia, e na ausência de entendimento, também solitária seria a tua vida. Hoje sonhei-te saída dum jardim artificial e casamenteiro, trazias o alimento que dava sede ao meu fruto, e a tua voz soluçava tanto como o meu íntimo nocturno.
Em que risíveis criaturas, tu e eu, nos transformámos? Podia a vida ter mais juízo e não me despedaçar tanto? Não, Ofélia! A vida continua, é deixá-la seguir, só as crianças se comprometem com o que dá gozo nelas e protegem com um tal sentido encantador os seus objectos de brincar.
Nenhum amor é mais que um desespero, Ofélia. Não temo tanto que o teu amor não seja para sempre quanto temo que ele permaneça planeado e insensível debaixo do mesmo tecto".

Fernando Esteves Pinto, in O Carteiro de Fernando Pessoa, Parsifal,


3 comentários:

  1. E recodei-me de uma carta de amor de Dylan Thomas, que li recentemente:
    "There isn't a moment of any hideous day when I do not say to myself. 'It will be alright. I shall go home. Caitlin loves me. I love Caitlin.' But perhaps you have forgotten. If you have forgotten, or lost your affection for me, please, my Cat, let me know."
    Thomas já tinha casado, Pessoa nunca o viria a fazer. Mas a solidão do amor está presente em ambos. Será o amor a anulação da solidão, ou pelo contrário, uma forma de a exacerbar -- excepto (excepto?) nos escassos momentos em que os amantes se transformam um no outro?

    Belíssimo.
    Boa tarde, Cuca!

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  2. acho que a solidão é orgânica e endémica e os que dela sofrem transportam-na para o amor e para todas as coisas. Mas também acho que às vítimas dessa doença, só o amor as pode salvar.

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  3. A solidão não te deixa só, respira o teu ar, alimenta-se de ti... Não se se é o amor se a força que vem da alma, ou se até mesmo a loucura que quebrarão as grilhetas com que te prende.

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