quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

...


Aos Amigos 

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, 
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente 
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder, Poemas Completos

2014, a síntese


Faltam menos de vinte e quatro horas para acabar o ano e ainda não fiz nada de que me envergonhe.
Foi um ano muito bom.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pequeno apontamento novo-burguês na terceira pessoa

Cuca, após aturada ponderação que envolveu um afastamento deliberado da Avenida da Liberdade e um processo de autoconvencimento assente no conceito "eu mereço", já previamente identificado como prólogo de todas as suas grandes asneiras, decidiu comprar uma mala Gucci. Daquelas pretas com umas riscas, encarnada e verde.
Já na loja, com a mala na mão, foi acometida por uma inesperada e inexplicável sensação desagradável, provocada pelo objeto. Confundiu a sensação com a reminiscência de uma consciência social latente, mas muito latente, e esqueceu o assunto.
Hoje de manhã Cuca decidiu sair para passear o cão e levou consigo a mala nova.
Uns metros à frente da porta de casa foi interpelada por um cidadão de origem paquistanesa, técnico de limpeza na câmara municipal de Lisboa, que abandonou o carrinho com o balde e as vassouras para se vir queixar da greve da TAP e dos seus efeitos nefastos sobre os planos de viagem da sua mulher e de como por causa disso vai passar sozinho o final de ano.
Cuca explicou que nada sabe sobre isso, que não percebe a abordagem e que é melhor perguntar a alguém da TAP. 
O cidadão, estrangeiro mas muito conhecedor dos detalhes e insígnias da companhia de aviação nacional, faz um ar desconfiado e pergunta a Cuca se, afinal, não é hospedeira da TAP.
Cuca, ainda sem perceber e tentando esconder uma certa frustração pelo facto da sua altura ter impedido uma fulgurante carreira como hospedeira, explica que não, que infelizmente não trabalha na TAP.
Então, o cidadão de origem paquistanesa, redobrando desconfiança, pergunta:
- Se não és hospedeira o que andas a fazer com uma mala da TAP?
Moral: vende-se Gucci.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Your dreams are possible

"Your dreams are possible" diz-me uma mensagem da Adobe, enquanto me preparo para escrever um post sobre a aranha que vi desenhada no guarda lamas de um carro.
Não sei em que se baseia a gratuita garantia. Talvez uma forma possível de legitimar as expetativas fosse transformá-las em código, dando-as a ler a um programa informático que se desse ao incómodo de analisar todas as variantes estatísticas. Um dia poderemos ajustar os nossos sonhos às suas possibilidades de concretização e viver vidas do tom do cinzento dos monitores desligados, perfeitamente higienizadas de frustração. Seremos asseticamente tranquilos. Continuaremos a não saber o que é a felicidade mas também não conheceremos o desespero.
Até lá, podemos sempre contar com o otimismo da Adobe. 
"Your dreams are possible", dizem eles confiando, mais do que nas infinitas possibilidades da vida, na nossa capacidade de autolimitação dos sonhos.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Há sempre qualquer coisa errada com toda a gente

 Com a próxima pessoa adequada com que estás a conversar descontraidamente, paras repentinamente a meio da conversa e olhas de perto para ela e perguntas-lhes: "o que é que se passa?" Dizes isso com um tom preocupado. A pessoa pergunta: "o que é que queres dizer com isso?" E tu respondes: "Há qualquer coisa que não está bem. Já reparei? O que é?" E ela fica estupefacta e pergunta: "Como é que percebeste?" Não se dá conta que há sempre qualquer coisa errada com toda a gente. Muitas vezes, mais do que uma coisa. Não sabe que toda a gente anda sempre por aí às voltas com qualquer coisa errada e convencida de que tem grande força de vontade e controlo para não deixar que os outros, que julga que nunca têm problemas, vejam. As pessoas são assim mesmo. Pergunta-lhes de repente qual é o problema e quer se abram e despejem o coração quer neguem e finjam que tu é que não estás bem, vão pensar que és perspicaz e compreensivo. Vão ficar gratas ou assustadas e evitar-te a partir dessa altura. 

David Foster Wallace, O Rei Pálido, Quetzal

Darwin explica

Os seres humanos, ao cair de uma escada não amparam o peso nas unhas, arrancando-as.
Foi uma falha dos mecanismos instintivos de sobrevivência na queda.
Uma falha, só agora o percebo, que revela um sintoma. Recorrente e explicativo.

Blues

We never seem to find peace of mind
We are always on the run away from the sun
And we have only just begun 

You say we have overcome, nothing is wrong
You say our job is done, battle is won
But we have only just begun.

Não são blues, são fados

Cumpro escrupulosamente a promessa de te esquecer. Há anos que a cumpro, esquecendo-me de ti todos os dias um pouco e fazendo-o ainda melhor no dia seguinte. Cumpro-a tão bem que já não saberia dizer a sensação dos teus cabelos entre os meus dedos, ou a expressão do teu olhar quando fixo no meu, ou o ligeiro encurvar da sobrancelha direita na tua fraca imitação do meu ar de amuo. Cumpro-a tão perfeitamente que já não me lembro do teu andar dançado; de nenhum sinal de nascença na omoplata esquerda; do ângulo de inclinação dos pés egípcios; do timbre musicado na pronúncia da segunda consoante do meu nome; do dedo anelar a eliminar da têmpora um pensamento insistente. E nem sequer me ocorre a tua duplicada interjeição de espanto, a forma amendoada das pálpebras adormecidas ou a pressão exata da tua mão na minha.
Porque todas estas coisas que agora percebo que já não lembro desfizeram-se na permanente, contínua, interminável missão de cumprir a promessa de me esquecer de ti. 


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Das coisas que só algumas pessoas podem ensinar-nos

A propósito de um almoço de quase Natal entre quase amigos e do tempo roubado às coisas que importam verdadeiramente, para fazer aquelas que verdadeiramente importam.

Do quanto passei e vi nada posso ensinar-te senão dizer-te o que vi e o que passei. E do que me disseram, o quanto que posso ensinar-te é o pouco que posso dizer-te, que foi o que me disseram: 
"Não fites a Estrada: segue-a até ao fim."

Fernando Pessoa, O peregrino, in O Mendigo e outros contos, Assírio & Alvim.

Um outro dezembro

Não sei em que dezembro nos perdemos.
Quando deixou o frio de acordar aninhado em laços de seda dourada
e restou este azul cinzento, terrível, da cor das veias,
a descer-nos pelos pés, descalços,
afogados na neve.

Quando se apagou o pavio da vela que foi o sol amplificado nas paredes
e amanhecemos sentados no desolo de um banco de jardim mergulhado na neblina.

E onde antes o eco de um riso,
agora,
apenas o uivo faminto do lobo,

A mastigar a doença que carregamos no fundo dos olhos
enquanto restamos aqui fora,
sentados,
de pés afogados,
à espera de um outro dezembro que nos faça regressar a casa.






quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Boas notícias

Em breve tudo estará ultrapassado.
Lá pelas três da manhã o último carro do lixo terá livrado a cidade dos sacos, caixas e papéis de embrulho.
Então, poderemos voltar a amanhecer disfuncionais,
Discretamente e sem complexos de culpa.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

And its christmas all over the world


Comecei por achar que, sendo ateia e Pirata, por razões de coerência ideológica, deveria evitar escrever mensagens de Natal.
Mas depois pensei melhor e ocorreu-me que o Natal é muito mais sobre a magia do que sobre o nascimento de Cristo. 
Decidi então aproveitar a imunidade ocasional que o espírito da quadra concede a um outro laivo de sentimentalismo para agradecer. 
Num mundo em que o tempo é senhor e nós escravos, nunca deixarão de me surpreender as pessoas que doam as suas horas a esta coisa da blogosfera.
Daqui, deste navio em deriva controlada pelos mares do sul do mundo, desejo a todos - autores, comentadores e leitores - que contribuem para esta estranha forma de magia, um Natal cheio de poesia. 

Onde pertencemos

(...)
Love lift us up where we belong
Where the eagles cry
On a mountain high
Love lift us up where we belong
Far from the world we know
Where the clear wind blows
Time goes by, no time to cry
Life's you and I, a life today
Love lift us up where we belong
Where the eagles cry
On a mountain high
(...)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Post sobre o Natal

Esta manhã, o sem abrigo da minha rua perguntou-me se não lhe queria dar uma moeda pois não. E eu respondi que não claro que não obrigada. E depois olhámos um para o outro e foi como se ele tivesse apenas pretendido oferecer-me uma oportunidade e como se eu a tivesse declinado. 

domingo, 21 de dezembro de 2014

O que farás com a memória do meu abraço?


Talvez uma lareira e seguramente uma mesa grande, escondida sob a toalha encarnada. A louça será branca e sobrevivente de, pelo menos, duas gerações. Há anjos dourados. Ou nas argolas dos guardanapos, ou nas velas que ardem sobre a mesa ou pendurados nas ombreiras das portas. O vinho será tinto. Não sei se bacalhau, se peru, se ambos. Os risos serão sinceros e quentes e também se ouvirão, em cântico, as omnipresentes vozes das crianças.
E entre esse coro do coração, quieta, séria e deslocada, a memória do abraço que, por não teres onde a deixar, levaste contigo para esta consoada. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O bolero dos surdos


Mantinham uma relação tripartida em simétricos e perfeitos terços de amor, respeito e raiva. 
Sabiam que estavam juntos há muitas vidas. As células têm uma memória desenganada que se desprende do fio da razão. Paradoxalmente, nenhum dos dois acreditava nas múltiplas possibilidades da reencarnacão dos homens. 
O estranho equilíbrio instalava o lar na convicção de uma existência anterior destruída pela mão do outro. 
Amavam-se com desconfiança. Era um jogo de vida ou morte.
Um dia, cumpririam as suas sortes de mútua aniquilação. Até que não restasse um rasgo de pele.
E depois voltariam à terra, à mesma margem de um rio cansado, perpetuando esse tango infinito de rosas cuspidas e facas apontadas. 
Ao coração.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Lamento

Há sentimentos feitos da sensação da areia entre os dentes, do frio da lâmina da adaga junto ao peito, do sol do meio dia nas dunas do deserto. E para esses, há a poesia árabe.

Lamento

Depois de Roma ter ardido 
e de tu teres ardido com ela 
não esperes de mim 
que te escreva um poema para te chorar 
eu não estou acostumado 
A chorar pássaros mortos 

Nizâr Qabbânî, tradução de André Simões, retirado daqui.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Castelos no ar

Em O Construtor Solness, de Ibsen, uma jovem rapariguinha, Hilde, e um homem mais velho e casado, Solness, apaixonam-se. 
Sem saberem o que fazer um com o outro, são momentaneamente salvos pela ideia de Hilde, boa moça mas com um evidente problema de fracas expectativas: 

SOLNESS (...) Mas diga-me lá o que é! O que é o mais maravilhoso do mundo e que nós vamos construir juntos?
HILDE (fica um momento calada e depôs diz com uma expressão indefinida no olhar) Castelos nos ar.
SOLNESS Castelos no ar?
HILDE (acena que sim com a cabeça) Castelos no ar, sim! Tem uma ideia do que é um castelo no ar? 
SOLNESS É o que há no mundo de mais maravilhoso, como a menina diz.
HILDE (levanta-se de repente e faz um gesto de rejeição com a mão) Sim, pois claro! Castelos no ar são fáceis de esconder! E fáceis de construir também ... (Olha para ele com desprezo) ... Sobretudo para os construtores que têm uma consciência que sofre de vertigens.
SOLNESS (levanta-se) De hoje em diante vamos construir juntos, Hilde. 

Mas ao menos nas peças de Ibsen os construtores de castelos no ar de consciência vertiginosa acabam sempre mal. No final, ela convence-o a subir a uma torre pelo capricho de o ver mais alto do que todos os outro homens. Ele cai e morre. 
Os instigadores, aparentemente, não são punidos. 





A quadragésima primeira vítima


Neste ano, em Portugal, já morreram 40 mulheres assassinadas por maridos e ex maridos.
Conheces os números e não te provocam nenhum arrepio pela espinha acima. Até te admiras que não sejam mais. Não por insensibilidade, que não és de desejar o mal das outras, mas porque há um terrível conforto na banalização do drama, que alivia a carga da culpa que tomas de empréstimo. 
Chamas-de Deolinda, Maria, Shirley ou Constança. Tens um ou quatro apelidos e tanto vives numa aldeia do interior, como num t1 apertado na Brandoa, ou num duplex nas Amoreiras. Por esta altura, já te ocorreu a possibilidade de um dia morreres pela mão de quem julgas amar. A experiência ensina as fragilidades do corpo humano e se há quatro meses ele não tivesse tido aquilo que confundes com um laivo de bondade e que o fez deixar de te apertar o pescoço quando as pernas já te fraquejavam, ou se a sorte não tivesse afastado de ti, na semana passada, aquela esquina da parede, o teu corpo já teria desistido. 
Não tens medo de morrer. Nalgum ponto da tua existência convenceste-te que é uma forma natural, talvez a única, de libertação. Entregas pois ao corpo a capacidade de resistência já que a alma está há muito desmaiada. A violência faz parte da dinâmica daquilo a que ainda chamas amor e no teu delírio as ondas de violência e humilhação a que te sujeitas são um segredo que vos aproxima e vos faz, aos dois, cúmplices do mesmo crime. 
É por isso, mais do que por vergonha, que quando te perguntavam no emprego pelas mazelas no rosto, inventavas respostas que já sabias colherem apenas encolheres de ombros e resmungos de tu lá sabes. Chegaste a gritar em desespero, na cara não, mas foi inútil. E agora já nem sequer perguntam. Por fim, também as tuas feridas se tornaram invisíveis. 
Não foi sempre assim, nunca é. Em tempos orgulhaste-te da sensação de lhe pertenceres e foram felizes por dois meses ou dois anos. Mas isso foi antes do vinho, ou do mau feitio, ou dos ciúmes, ou dos nervos, ou do stress profissional. Depois, as indisposições dele foram a espiral crescente que agora ocupa todas as divisões da casa e para as quais contribuis com o simples facto de existires. Já foste à bruxa e lavaste a porta da casa com vinagre ou à livraria onde compraste os livros de auto ajuda que leste às escondidas. À falta de outra coisa tens esperança. 
Não te vais embora porque achas que não vales a pena. Mas colecionas falsas justificações que tanto podem ser o dinheiro, a casa, os teus pais ou os teus filhos. 
Tens no quarto uma fotografia do vosso casamento ou de um fim de tarde na praia em que alguém congelou a expressão apaixonada que te serve de prova de que não foi sempre assim.
Com sorte, é essa fotografia a última coisa que verás na tua vida. Quando o vinho, o mau feitio, os ciúmes, os nervos ou o stress profissional do teu marido forem a faca que te espeta no peito, a arma que te dispara na cabeça ou as mãos com que te estrangula o pescoço, verás a tua própria expressão de outros dias, plasmada num retângulo de celulóide, e lerás nela a terrível acusação por nada teres feito para te salvares.
Se tiveres azar, essa mesma acusação estará nos olhos dos teus filhos, testemunhas da vossa cumplicidade no crime.
Não queiras ser a quadragésima primeira vítima e ir passar o Natal à terra. 
Queixa-te.

(Fotografia tirada da internet de autoria desconhecida)


sábado, 13 de dezembro de 2014

Na dúvida, obedecer apenas ao que nos convém


(....)mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor,o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades.

Êxodo 20:10

Não me responsabilizo pelos demais pecadores deste reino cujos gestos,  muito provavelmente, são responsáveis pelo mau tempo que uma qualquer criatura divina de instintos vingativos e pérfidos nos enviou com finalidades fustigadoras. 
Eu e o meu cão obedeceremos com gosto e não tencionamos fazer trabalho algum até que o sábado e respetiva sombra se extingam por completo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Diário de Bordo

Tal como era previsível, a pobreza voluntária a que nos submeti depois de transformar todas as nossas riquezas em dólares e ir para Nova Iorque cumprir a heróica missão de gastar tudo, teve a virtualidade de nos libertar dos insuportáveis vícios burgueses que já ameaçavam afastar-nos da nossa principal razão de ser que, entre tantos banhos de sol no convés, sessões cinematográficas, greves e jantares gourmet, convém lembrar, é aterrorizar o mundo e dominar os mares.
Reunimos-nos ontem para comemorar o dia internacional dos direitos do homem, coisa para a qual nos estamos todas nas tintas, afinal somos Piratas, mas que comemoramos na mesma para exercitar o cinismo e a hipocrisia e para angariar atenuantes para o improvável caso de um dia virmos a ser julgados pelos nossos crimes. 
Fizemos um arraial no convés com aquelas luzes das festas do Santo António de Lisboa, em que não faltaram manjericos e sardinhas assadas e nem sequer uma marcha popular horrivelmente cantada pelo Álvaro de Campos, o engenheiro. Por ele teria cantado outras vinte, mas os tripulantes ex presidiários, por razões que não imagino quais sejam, exercem sobre ele o estranho poder da neutralização através de um simples olhar de relance. Espero que não andem a violar direitos humanos. 
Poder-se-ia estranhar a forma escolhida para a comemoração, já que estamos em dezembro e não em junho, mas a verdade é que nessa altura, ainda esmagados pelo peso da riqueza, estávamos demasiado apegados ao nosso estatuto "noveau riche" para nos podermos dar ao luxo de um divertimento que na sua designação inclui a palavra "popular". Também por isso, fiz muito bem em esvaziar os cofres e obrigar-nos a todos à pobreza.
É uma pena que a minha tripulação não partilhe das minhas qualidades visionárias e mantenha uma irritante atitude de cobrança e amuo perante a drástica alteração no nosso estilo de vida, insistindo em incompreensíveis e ultrapassados conceitos capitalistas vagamente relacionados com a acusação de também ter gasto o dinheiro dos outros. No entanto, já disse alguém que agora não sei quem foi mas que poderia ter sido meu amigo, que o poder é um lugar muito solitário.
Claro que os custos da festa de comemoração do dia internacional dos direitos do homem nos levaram o que sobrava para os festejos do Natal. Confrontada com esse problema demorei exatamente dois segundos a encontrar a solução evidente: 
Pois se não temos dinheiro para o bacalhau, assaltemos um bacalhoeiro!



Estados de espírito


Este Natal não abandone o seu blogue

Os blogues abandonados suscitam-me uma nostalgia semelhante àquela que imagino resultar de um passeio de domingo à tarde por um cemitério de aldeia. 
Deixo aqui o meu protesto pela licença sabática do Xilre que, estou certa, não foi autorizada por ninguém. Além do mais, três dias é tempo suficiente para refletir sobre todos os quadrantes do universo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

E se tu não existisses


Et si tu n'existais pasDis-moi pourquoi j'existeraisPour traîner dans un monde sans toiSans espoir et sans regret
Et si tu n'existais pasJ'essaierais d'inventer l'amourComme un peintre qui voit sous ses doigtsNaître les couleurs du jourEt qui n'en revient pas(...)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

É preciso lembrá-lo todos os dias

A violência que nos rodeia parece extrema, mas na realidade vivemos vidas seguras, com pouco crime a atingir cada pessoa. Aliás, nunca se viveu com tanta segurança. Como diz um dos autores citados, Ian Morris, sacar de uma arma num bar tem sérias consequências. Em comparação com o passado, as pessoas de hoje nunca estiveram tão bem alimentadas, o grau de instrução da maioria é inédito e o indivíduo mais banal tem direito à justiça. As sociedades avançadas são democráticas e os cidadãos gozam de amplas liberdades. A saúde e a longevidade não têm paralelo com o que acontecia nas gerações anteriores e, no entanto, um pequeno surto de doença pode provocar um pânico. À luz de tantos indícios contrários, o pessimismo contemporâneo é quase incompreensível. Os nossos antepassados tinham vidas curtas, perigosas e sem grande esperança. Nós, pelo contrário, vivemos numa época em que as maiores incertezas são sobre a próxima ruptura tecnológica. E, no entanto, muitos julgam que o amanhã pode não ter aurora, torna-se até difícil defender o contrário, pois isso é considerado optimismo, sinónimo de imbecilidade e loucura.
In, Fragmentário, Luís Naves

Esse resto de dignidade

Atirei à terra esse resto de dignidade.
A terra foi generosa. Floresceu um bosque cerrado.
Onde lenhador nenhum poderá entrar.

I Know places

Quando me perguntaram onde queria mesmo estar, lembrei-me do gesto matinal de abrir uma pesada janela branca com vista para um pasto que se estende até ao mar. E de um mundo desenhado a verde e a cinzento. Um verde e um cinzento que não voltarei a ver em qualquer outro canto do universo. Lembrei-me de ganhar intermináveis horas com os olhos pousados nos movimentos lentos de um barco de pesca. Contei todos os por-do-sol a que assisti e foram tantos. Lembrei-me da lua a dançar sobre a  areia da praia que ia sendo engolida pelo mar até só ficarem as pedras cinzentas. E do som das ondas na escuridão daquelas noites que os homens se esqueceram de iluminar. Pensei na varanda onde nos sentávamos para assistir a Orion e sentíamos as constelações como uma aventura cinematográfica. E no cheiro da terra depois da chuva que caia sempre à mesma hora. E na lentidão dos gestos em que fervíamos o amor. Como se o cozinhássemos no forno grande da cozinha de pedra, em cuja chaminé os pássaros vieram fazer o ninho. 
Depois respondi que queria mesmo estar em Nova Iorque, no terraço do mais alto dos arranha céus. 
Talvez não tenha mentido. Não há nenhum sentido em querer estar-se no sítio de onde nunca se conseguiu sair.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

domingo, 30 de novembro de 2014

Do epitáfio quase perfeito

Horário do Fim

morre-se nada 
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos 

morre-se tudo 
quando não é o justo momento 

e não é nunca 
esse momento

Mia Couto, in A Raiz de Orvalho e outros Poemas, Caminho.

Vem no Ibsen ...

Ando há uns tempos a tentar descobrir o criador desse magnífico conceito romantico-decadente da morte em vida. É um conceito maravilhoso, suscetível de satisfazer as necessidades e angústias metafísicas do amante mais cobarde.
Morrer em vida, tendo praticamente os mesmos efeitos, é uma decisão muito mais dramática e elegante do que, por exemplo, enfiar uma bala na cabeça.
No entanto, se pensarmos bem, comparativamente com o suicídio clássico, traduz uma cobardia reforçada. Enquanto o bom velho e simples suicida só é cobarde uma vez, o morto em vida mantém um grau de cobardia permanente, renovando, todos os dias da sua morte, a intenção inicial. É uma espécie de dolo qualificado.

De acordo com as minhas pesquisas, o criador do conceito bem pode ter sido Henrik Ibsen. 
Tenho provas.


Da peça Quando nós, os mortos despertarmos:

(...)
IRENE (levanta-se lentamente da cadeira, a voz trémula) Estive morta muitos anos. Vieram e levaram-me... amarraram-me os braços atrás das costas e fecharam-me numa sepultura com grades de ferro e paredes alcochoadas...para que ninguém à face da terra pudesse ouvir os lamentos que vinham daquela sepultura. Mas agora estou a começar a despertar - um pouco - de entre os mortos. (senta-se.)
RUBEK E achas que eu sou o culpado?
IRENE Sim.
RUBEK Sou o culpado dessa tua morte?
IRENE Culpado de me ter sido preciso morrer."
(...)

Da peça John Gabriel Borkman:

"BORKMAN ...Aos que vierem depois. Pois sim! É quase como se eu já estivesse morto.
GUNHILD BORKMAN (com ênfase) E estás!
BORKMAN: (lentamente) Talvez tenhas razão. (Num ímpeto:) Mas não! Ainda não! Estive muito perto, muito perto da morte, mas agora despertei. Renovado. Há muita vida ainda diante de mim. E posso ver esta vida nova, radiosa, que lateja enquanto aguarda. E tu também vais vê-la ...
GUNHILD BORKMAN Não sonhes mais com a vida! Continua enterrado onde estavas!
ELLA RENTHEIM (indignada) Gunhild, Gunhild! Como é que tu tens coragem..
GUNHILD BORKMAN (sem a ouvir) Vou erguer um monumento sobre a tua sepultura.
BORKMAN Um pelourinho, com certeza.
(...)"

E isto são apenas dois exemplos nas duas primeiras peças. Desconfio que quando terminar os três volumes terei, na sua plenitude, a compreensão das maneiras possíveis de se morrer em vida. 

sábado, 29 de novembro de 2014

Ilusionista


Abro as asas de cetim estrelado
e do coração estéril
nascem pombas.

Ergo os braços feitos de cometas
e das mãos vazias
desprendem-se rios

Ensaio nas vielas da noite
os aplausos dos mendigos,
E agradeço
a todas as pedras.

Faz frio
Molham-se as asas
Pesam os braços

Não me queixo
do meu destino.

Às vezes,
Um rasto de penas
Ou um resto do rio.
E o coração menos estéril
Ou as mãos menos vazias

E sou o mendigo iludido
E a pedra agradecida
E faz menos frio.

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

Vivo à deriva neste navio pirata para não morrer afogada ao largo do teu cais.


(O título foi saqueado a Álvaro de Campos e a imagem, apesar de roubada da net, bem poderia ser um print da retina da minha memória)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Ciganos



Já cheia, a lua viu. Estavam sentados em redor de uma fogueira. Corpos magros escondidos sob trajes negros. Almas livres debaixo de olhos negros. Cabelos negros ocultos pelos chapéus, eles, e pelos lenços, elas. Os únicos três que não estavam sentados no chão, do alto dos seus troncos de árvore empunhavam guitarras na expressão de raiva contida de quem aponta espingardas. Por todos, dois cantavam.
Fora da roda, a cigana descalça dançava e dançava e dançava.
O rasto vermelho feito da seda do seu lenço é a minha primeira memória. 
Tatuada no gene da liberdade.
   

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Asas fechadas

Como uma ave que se desninha. É assim que o lembro. A cair aos tropeções, de asas fechadas, unidas ao peito, o mar a aproximar-se cada vez mais depressa, dir-se-ia que a subir a falésia.
O mar. 
Os rostos assumem uma expressão própria quando a alma lhes é centrifugada. 
É assim que o lembro. 
Os olhos a refletirem episódios do pecado, como quem os vomita. 
Diz-me agora a lua,
A ave terá sobrevivido ao mergulho, sacudido as penas, reerguido as asas. 
Ensaiará um voo. 
Talvez recupere os pecados de que se alimenta.
O mar.
Mas os rostos assumem uma expressão própria quando a alma lhes é centrifugada.
Uma expressão inesquecível. 
E é assim que o lembrarei.


domingo, 23 de novembro de 2014

O mundo ao contrário

Depois de uma viagem de duas horas pelas notícias e respetivos comentários, só me ocorre uma dúvida:
O que diriam os juízes de Berlim perante moleiros que assentam a sua esperança no rei da Prússia?

Comunicações intergalácticas

Às vezes, quando anoitece nesta estância balnear que agora voltou a estar abandonada e o silêncio cai sobre a sala e arde a mesma baunilha na atmosfera e a mente desfoca-se numa miopia cansada, o espanto sobe como um arrepio que denuncia o frio muito depois de se ter instalado e é só então que percebo que ainda sou surpreendida pela notícia da tua morte. 
É nessas alturas, quando o espanto dá lugar à raiva que se espande para além do limite onde não mora o perdão, que percebo a utilidade dos rituais da morte.
As pessoas homenageiam os seus mortos não para os manterem vivos na sua memória, mas para garantirem a lembrança de que os seus mortos morreram. Para nunca serem surpreendidas por este espanto terrível que não se aprende nem com a frequência. 
Não te acendo uma vela que ilumine a minha memória por desconhecer o protocolo do lugar de destino. Além do mais, um dia assisti a uma sessão espírita caseira em que o morto da dona da casa, indignado, se deu ao trabalho de aparecer para a censurar por não lhe acender velas. É, pois, a minha melhor esperança de te retribuir o incómodo pela ausência. E pelo espanto. E pela raiva.

sábado, 22 de novembro de 2014

Enquanto não chove

Há-de cair esse céu que já pesa nos ombros e adensa as clavículas, de dentro para fora.
É o reverso do abraço.
Suspende-o a força que assegura a distância entre os nossos dedos.
É o espaço de não existência onde se equilibra o mundo.

Há-de cair o céu num abraço.
E então o mundo choverá.
E será novembro.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Insignificância

Enquanto cortava as unhas dos pés, porque a mim ocorrem-me sempre coisas importantes quando corto as unhas dos pés, percebi que o único pecado que ainda não aprendi a relativizar é o da insignificância. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Outra Mulher que Chora


Outra Mulher que Chora

Decanta toda a infelicidade
Do teu coração demasiado ferido,
Que o luto não adoçará.

O veneno cresce na escuridão.
É na água das lágrimas
Que emergem as suas flores negras.

A magnífica razão de ser,
A imaginação, a única realidade
Neste mundo imaginado

Deixa-te
Com aquele por quem nenhuma fantasia se move,
E tu és trespassada por uma morte.

Tradução de Cuca

Another Weeping Woman

Pour the unhappiness out
From your too bitter heart,
Which grieving will not sweeten.

Poison grows in this dark.
It is in the water of tears
Its black blooms rise.

The magnificent cause of being,
The imagination, the one reality
In this imagined world

Leaves you
With him for whom no phantasy moves,
And you are pierced by a death.



Wallace Stevens

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Elogio do esquecimento

Para a maior parte das angústias há pelo menos uma solução possível. Para as outras, criou-se o esquecimento. Um manto pesado e escuro, tecido pelas linhas do tempo, com o qual numa certa manhã acordamos vestidos. Um dia, a pele desmemoria-se pela ação do tempo. E depois podemos dizer, como Borges, "A meta é o esquecimento. Eu cheguei antes." 
Também não nos lembraremos de verificar a integridade da fita que assinala a meta. 
Já não interessa. É a verdadeira glória do esquecimento sincero.

domingo, 9 de novembro de 2014

Diário de Bordo

Neste navio Pirata, onde insistimos em manter hábitos de civilidade (exceto no caso dos ex presidiários residentes relativamente a quem o verbo adequado é criar e não manter), aos domingos almoçamos todos juntos na grande mesa que instalamos no convés. Colocamos a toalha de bordado da madeira que nos foi oferecida numa tarde em que andámos a roubar contentores a um cargueiro lá para os lados do Funchal; um desastrado centro de mesa feito de plantas carnívoras; o serviço da companhia das índias falsificado que nos foi enviado como oferenda de paz pelas tríades chinesas; tomamos banho e sentamos-nos à mesa, limpos, sóbrios e felizes, a comemorar esse último reduto das almas burguesas, que é o meio dia de domingo.
Hoje ordenei a Andrmenhir, o cozinheiro Pirata Viking cujo nome nunca consegui escrever duas vezes da mesma forma, que preparasse uma refeição especial. A efeméride é uma conquista pessoal minha, totalmente irrelevante para a tripulação, mas que decidi impingir-lhes com o entusiasmo dos grandes feitos coletivos, desde logo, porque em mim habita uma alma generosa e escolhi convencer-me que as minhas glórias também são dos outros.
Pela primeira vez na vida consegui fazer um bolo. Um bolo daqueles a sério que se podem comer e tudo e que até tem aspeto de bolo. Precisei de muita coragem para enfrentar o terror de um forno a duzentos graus, a parafernália de taças, colheres de pau, chávenas para medir as coisas que enfiei lá para dentro, pacotes assustadores com estranhos ingredientes como farinha e uma coisa que descobri recentemente chamada açúcar mascavado. Também tive de fazer apelo a todas as minhas forças para não desistir do projeto das outras vinte e duas vezes que passei por este processo para obter como lastimável resultado uma coisa disforme e de consistência aborrachada que até o meu cão se recusou a comer.  
Mas à vigésima terceira vez, consegui fazer um bolo. E este é o feito que oblitera todas as outras coisas que alcancei na vida porque, percebo-o agora, conseguir fazer um bolo (para mais, de chocolate, canela e framboesas) e consegui-lo fazer sozinha, é, realmente, o único sonho da minha vida que valeu a pena perseguir. 
Neste navio, hoje ao almoço, a sobremesa será leite creme feito pelo Andrminhir, o cozinheiro pirata. 
Vou fossilizar este bolo para o usar como amuleto e bússola existencial. Para não mais me desviar daquilo que é realmente importante. 

sábado, 8 de novembro de 2014

Coisas que eu só não disse porque ninguém me perguntou

Na última edição da revista Ler.

Virgínia Woolf sobre o Ulysses de Joyce "É a obra de um estudante universitário enjoado a espremer borbulhas."

Oscar Wilde sobre Alexander Pope: "Ha duas maneiras de não gostar de poesia; uma, não gostar; a segunda, ler Pope."

Evelyn Waugh sobre Marcel Proust: " A ler Proust pela primeira vez. Muito fraco. Acho que era deficiente mental. "


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria

Éramos tão maus, mas tão maus, que conseguíamos encontrar verdadeiro divertimento na mórbida atividade de procurar na literatura dos já idos o epitáfio perfeito para quando o outro se fosse.

(O título foi roubado ao epitáfio de Clarice Lispector)

Platão

De uma forma ou de outra, todos estamos, pelo menos em parte, condenados a nascer e morrer dentro da caverna de Platão, voltados de costas para a tal fresta por onde entra uma luz ténue e confundindo as sombras projetadas na parede com a verdade das coisas que, afinal, desenrola-se nas nossas costas.
Por mais que queiramos acreditar no contrário, há coisas relativamente às quais nunca conseguiremos saber mais do que as sombras. 
Não consigo decidir se isto é coisa boa ou má. Os cristãos garantem-nos que é dos pobres de espírito o reino dos céus. E a avaliar pela felicidade de alguns aficionados das sombras, talvez não lhe devêssemos chamar Alegoria da Caverna. É, temo, uma Alegria da Caverna. 

sábado, 1 de novembro de 2014

Poetas pragmáticos

Deixemo-nos agora, meu amor: mas não 
seja amargo desastre. Houve no passado, 
muito luar a mais e auto-compaixão;
acabemos com isso: já como nunca é dado
agora ao sol audaz atravessar o céu 
e nunca aos corações deram mais ganas
de serem livres contra mundos, florestas; eu
e tu não os detemos, nós somos as praganas
a ver o grão partir e é para outro uso.

E tem-se pena. Sempre se tem alguma.
mas não demos às vidas laço escuso,
como barcos ao vento, de luz molhada a crista,
desferram do estuário e cada um lá ruma: 
separam-se acenando e perdem-se de vista.

Philip Larkin

Manual de Instruções

Não esperes que cozinhe. Nem que limpe a casa. Nem que trate da roupa. Dá tu as instruções à empregada.
Não me peças que conduza a menos que estejas cansado.
Nunca me mintas ainda que a verdade te dê muito trabalho. Se for grave, serás descoberto.
Escolhe a praia em vez do campo e pede tarte de maçã em vez de bolo de chocolate.
Não perguntes pelos meus pensamentos, não me relates as notícias do teu jornal, não me obrigues a ver futebol.
Escolhe o vinho mas opta por aquele que tens a certeza que vou gostar.
Tem certezas. E sonhos. Reserva um que seja impossível de concretizar.
Não me corrijas em público, mas avisa-me em privado. Podes gozar comigo. Ninguém o fará tanto como eu própria.
Se fores pobre ou sovina, sofre em em silêncio e não faças contas ao dinheiro na minha presença.
Interessa-te pelas minhas músicas e pelos meus livros, eu interessar-me-ei sempre pelos teus.
Às vezes regresso a casa cansada ou triste. Não me peças que te explique e conta-me anedotas ao ouvido.
Ama o silêncio.
Não me perguntes pelo meu passado e não tragas o teu para dentro do meu presente.
Bebe café e álcool e come carne. Desconfio de quem não o faz.
Deixa-me comprar-te coisas.
Faz aquilo que te pedir. Pedir-te-ei raríssimas vezes.
Existe comigo numa realidade paralela.
Não morras e sobretudo não te mates.

Inspirado neste post do Pipoco Mais Salgado que, por sua vez, se inspirou neste post da Domadora de Camaleões.

O injustificável

Enquanto fingia ouvi-lo ensair uma patética tentativa de justificação do injustificável, ocorreu-me que aquilo que têm em comum os seres humanos, que mais drasticamente os distingue dos outros animais, é a necessidade de se fazerem compreender.
A Dona Rosa da padaria dois quarteirões acima de mim, o esquimó que esta manhã casou a filha mais nova, o psicopata assassino condenado à morte por um juri nos EUA, o tenista que acaba de perder um jogo decisivo, o índio que regressa à sua reserva com as botas sujas de pó, a bailarina espanhola que esbofeteia o seu amante, o político caído em desgraça duas semanas antes das eleições, o rapaz que caiu do skate e partiu um braço, a vendedora de flores de olheiras fundas, o escritor que esta tarde apresenta pela primeira vez o seu novo livro.
Todos eles, movidos e unidos pela obsessiva, cansativa, infindável, permanente, desesperada necessidade de se fazerem sempre compreender por toda a gente.
O que nos une a nós e nos separa dos outros, senhores, não é a linguagem, a capacidade de auto-reflexão dos atos, o salto metafísico da pseudo-racionalidade, o reconhecimento das nossas trombas no espelho do átrio da entrada. Tirando o último, que é um mito, todos os outros são consequências. O que nos une e nos separa das outros é a inútil e constante necessidade inata de sermos compreendidos.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O ensinador de nuvens


Pendurada nestes fiapos do céu de hoje,
quase consigo ver os contornos do sorriso que disfarças,
para depois  denunciares na expressão dos sonhos acordados
dos meninos de outros dias.

Estás rodeado de gente séria,
de pescoços esticados na direção do céu,
enquanto lhes desvendas metade do mistério da transmigração da substância das nuvens.

A outra metade é demasiado tua para que a possas ensinar.
É essa reserva, a génese do sorriso que disfarças,
para depois denunciares na expressão dos sonhos acordados
dos meninos de outros dias.

Pendurada nestes fiapos do céu de hoje,
quase consigo tocar a substância das nuvens
na metade que não ensinas:

a que é demasiado tua.

Sortes chinesas

Ouvi os versos, pela primeira vez, numa noite de início de verão, deitada numa varanda com vista para Orion.
Falava na sorte moldada pelo barro daquela terra. Uma sorte, dizia o verso, marinheira. Uma sorte, explicava, entre o mar e o vento norte.
Aprendi as palavras de cor, que é como quem diz, com o coração. 
Foi para me libertar delas que as escrevi, pela últma vez, numa manhã de início de outono, num antigo livro de visitas.
Não voltei a ouvir ou a escrever os versos e menos ainda a ver o barro daquela terra. 
Mas agora, vários anos depois, percebo que, afinal, na partida não me libertei de nada. Nem dos versos que continuo a saber com o coração, nem da sorte que foi moldada naquele barro.
Uma sorte marinheira, entre o mar e o vento norte.


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Das coisas bonitas

Get out of my mind
In the morningRests the paperHeavy snow fallWakes my neighborsThe alarm callsI clean out my eyesFeeling nauseousAs the world spins around
Get out of my mind

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Eufemismos

À primeira vista parece satisfatório definir-se a vida, uma vida em concreto, como uma sucessão de experiências. 
Mas por vezes percebe-se que, não deixando de ser assim, o sentido verdadeiro estará mais próximo de Oscar Wilde, que escreveu que a experiência é o nome que damos aos erros. 
Apenas uma sucessão de erros, portanto.


terça-feira, 28 de outubro de 2014

Quando saíres fecha a porta

Deste palácio abandonado mandei arrancar todas as portadas.
No seu lugar ficaram as janelas por onde entra o mundo.
O nó que sentes na garganta é o início de uma amigdalite vitalícia. 
Há-de descer-te pelos pulmões até ao coração inflamado.
Aqui há correntes de ar impróprias às fragilidades humanas.
Restringimos a complacência a fraquezas de origem divina. 

Neste palácio abandonado não há gaiolas fechadas.
Os pássaros fazem o ninho nas palmas das minhas mãos abertas
E as crias debicam-me as nozes dos dedos por onde escorreram os anéis.
Em tempos houve rubis. Mas as pedras são frias.
Se não tens cuidado congelam-te o olhar.
Troquei-os por duas ou três gotas de sangue nas veias. 

Por este palácio abandonado passeia-se em fúria o vento norte.
Rouba a areia das praias para desenhar as dunas que me servem de cama 
E pelas frinchas dos sonhos sopra acordes de orquestra que me embalam.
O silvo que te rodeia os ouvidos é a agonia do vento norte
há-de instalar-se no interior da tua memória e ensurdecer-te.
Aqui ouve-se uma música imprópria às fragilidades humanas.

Por isso, por favor, quando saíres fecha a porta.

domingo, 26 de outubro de 2014

Moraly speaking

“Am I a good person? Deep down, do I even really want to be a good person, or do I only want to seem like a good person so that people (including myself) will approve of me? Is there a difference? How do I ever actually know whether I'm bullshitting myself, morally speaking?” 


In David Foster Wallace, Consider the Lobster and Other Essays

São ecos, senhora

A partir de determinada altura, o individual perde toda a importância para o coletivo, mas no pior sentido possível do conceito. 
Até uma relação desfeita deixa de ser lamentada de "per se".
Nada tem importância superior a um eco de uma coisa maior e mais distante. 
Se, com sorte, conseguires chorar, não choras a perda da pessoa ou da expetativa da pessoa que deixou de fazer parte da tua vida. Choras um coletivo de despedidas ou, com ainda maior sorte, aquela despedida que pela primeira e definitiva vez te partiu o coração.
É mais ou menos como ir para o funeral dos mortos dos outros chorar os nossos. Ou chorar sempre o mesmo morto em todos os funerais.
São ecos.
Não têm nenhuma importância. 

sábado, 25 de outubro de 2014

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Dor nos dedos

Quantas vezes choras a ouvir música e quantas vezes a ler um livro? A literatura não é eficaz nessa coisa: se é para sofrer a literatura é inútil. A música é rápida como a pancada forte é rápida na dor dos dedos.

Gonçalo M.Tavares, in àgua, cão, cavalo, cabeça

Relíquias

É fácil, demasiado fácil, dir-me-ias, jurar o ateísmo e mofar com a transcendência, vivendo-se rodeado de relíquias.
Um sari indiano que viu demasiadas coisas até chegar às minhas mãos. O búzio que semidesfiz entre os dedos. Uma folha de cartolina pintada de vermelho com ondas esculpidas a tinta prateada. Os restos de uma caixa de música e respetiva bailarina aprisionada que salvei das cheias. Uma pobre e velha edição da Ilíada com um coração desenhado a esferográfica durante um voo intercontinental. 
Procura-se a salvação tacteando coisas com o fervor da beata que desfia rosários. Consegue-se até, com esforço, engolir a cisma das energias congeladas nos objetos que, dir-me-ias, representam a mesma iconoclastia dos santinhos na mesa de cabeceira.
Terias razão. Não há diferenças significativas entre a entrega da esperança à ineficácia dos deuses e a absorção do desespero na impotência dos mortos.
Mas onde falham os deuses, sobram-me os mortos. 




segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Exigências de reposição

E até este verão que se instala quando já outubro se esvai em soluços, parece um último esforço do universo na reposição da ordem. Voltámos, portanto, a agosto e ao exato instante em que o caos interrompeu a métrica daquele que presumo ser o mesmo poema que leio hoje.
Tivemos de voltar a agosto para que, entretanto, nada, nada, se tenha passado.

domingo, 12 de outubro de 2014

Nós os Piratas percebemos pouco do prémio Nobel da Paz

... Mas ficámos desconfiados que este ano ninguém fez grande coisa por isso da Paz.

sábado, 11 de outubro de 2014

Contrato de salvação

Sentada num dos telhados da cidade, com a lua a emprestar o brilho ao rio, percebi, finalmente, porque é que gostava tanto daquela música. 
Se não estiverem ambos atrás do final do mesmo arco-íris, poderás ter uma coisa com várias designações à medida das tuas melhores conveniências. Nunca terás amor. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Insónia

E depois a noite. 
À espera.
Para roer as partes mais cansadas do corpo. 
O silêncio a pesar na curva das pernas. As sombras a lembrarem-me que vias cães doentes pendurados no tecto quando te deitavas, 
assim, vazio de tudo o resto.
Lá fora, o jardim imóvel confunde-se com um cemitério.
 À espera. 
Aquela árvore sem folhas poderias ser tu, 
Empoleirado na minha janela a escarnecer da gravidade de um outro olhar que desiste.
Numa madrugada assim tudo se torna possível.
Até sentir a paz que te ficou do voo eterno em que te lançaste.
À espera. 
Enquanto a noite durar, evitar os espelhos.
E os tectos onde balançam animais doentes.
E o silêncio que esmaga os ossos cada vez mais pesados.
 E o jardim, lá fora, que se confunde com um cemitério. 
À espera. 



terça-feira, 7 de outubro de 2014

Das perguntas proibidas


Y será verdad, y será verdad, y será verdad
Que tengo un lugar en tu alma

Y será verdad que en tu soledad me buscabas
Y será verdad que en tus sueños no me encontraba
Y será verdad, y será verdad, y será verdad
que tengo un lugar en tu alma

(...)

Desde que el mar y la luna, desde que el sol y la tierra,
desde que la aurora es una, desde que el hijo y el padre
Desde el deseo y la carne, desde entonces mi locura

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Empréstimos

No livro que me foi emprestado, uma dedicatória manifesta o desejo imenso de ficar com ela para sempre. E informa que ele lhe pertence. 
Não sei quem foi ela, se o livro nunca chegou a ser entregue à destinatária da dedicatória, ou se foi devolvido, espólio de inventários posteriores. 
O desejo imenso não se cumpriu. Mas há declaraçoes de propriedade que sobrevivem à frustração das vontades. 
Ocorreu-me que nunca saberemos, de facto, a quem pertencem as pessoas com quem partilhamos as noites. 
É a diferença entre uma doação e um empréstimo. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Como um rei

O coelho como rei dos fantasmas 


A dificuldade de pensar no final do dia,
Quando a sombra disforme cobre o sol 
E nada sobra a não ser a luz na tua pele - 

Havia o gato a lamber o seu leite todo o dia 
Gato gordo, língua vermelha, mente verde, leite branco 
E Agosto, o mês mais tranquilo.

Existir, na relva, no mais tranquilo dos tempos, 
Sem aquele monumento de gato,
O gato esquecido na lua;

E sentir que a luz é uma luz de presença,  
Onde tudo é pensado para ti
E nada precisa ser explicado;

Então não há nada em que pensar; tudo nasce de si próprio;
E o Este apressa o Oeste e o Oeste apressa-se. 
Não interessa. A relva está cheia.

E cheia de ti. As árvores em redor são para ti,
O todo da imensidão da noite é para ti,
Um ser que toca todos os limites,

Tu tornas-te num ser que preenche os quatro cantos da noite. 
O gato vermelho esconde-se no brilho do pelo
E lá estás tu, a subir a duna, na duna,

estás cada vez mais alto, na duna, preto como pedra
Sentas-te com a tua cabeça como uma escultura no espaço 
E o pequeno gato verde é um inseto na relva. 

Wallace Stevens
Tradução de Cuca 


The rabbit as the king of the ghosts

The difficulty to think at the end of day,
When the shapeless shadow covers the sun
And nothing is left except light on your fur—

There was the cat slopping its milk all day,
Fat cat, red tongue, green mind, white milk
And August the most peaceful month.

To be, in the grass, in the peacefullest time,
Without that monument of cat,
The cat forgotten in the moon;

And to feel that the light is a rabbit-light,
In which everything is meant for you
And nothing need be explained;

Then there is nothing to think of. It comes of itself;
And east rushes west and west rushes down,
No matter. The grass is full

And full of yourself. The trees around are for you,
The whole of the wideness of night is for you,
A self that touches all edges,

You become a self that fills the four corners of night.
The red cat hides away in the fur-light
And there you are humped high, humped up,

You are humped higher and higher, black as stone—
You sit with your head like a carving in space
And the little green cat is a bug in the grass.


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O feminismo é cool

Sou feminista, como Emma e como a generalidade das mulheres, desde o dia em que percebi que, pelo simples facto de ser mulher, corria o risco abstrato de gozar de menos direitos do que os homens. Não sei quando é que isso aconteceu, mas tenho a certeza que sou feminista desde essa data porque o feminismo não é mais do que fazer parte do grupo de pessoas que acredita que é intolerável que as mulheres sejam prejudicadas nos seus direitos de cidadania, apenas por terem nascido mulheres.
Grande parte dos homens que conheço, provavelmente a maior parte, embora assim não se reveja de forma consciente, são tão feministas quanto eu.
São hoje pacificamente aceites na generalidade das sociedades ocidentais os princípios defendidos pelo chamado feminismo de primeira onda (concessão às mulheres do direito de voto, do direito de propriedade e o reconhecimento de que as mulheres e os filhos não são propriedade do marido). 
O feminismo de segunda onda, iniciado em 1960, centrou-se na luta contra as desigualdades sociais e culturais e teve como ênfase a tentativa de estabelecimento de políticas que evitassem a discriminação efectiva das mulheres.
Cerca de 1990, com o surgimento do feminismo de terceira onda - e mais tarde com o pós-feminismo, que acredita que estão estabelecidos os objetivos da igualdade de género - geraram-se divisões dentro dos próprios movimentos feministas, já que enquanto alguns acreditam que há diferenças de género que devem ser assumidas, outros defendem que essas diferenças pura e simplesmente não existem.
O discurso de Emma Watson na ONU, embora apresentado sobre as vestes de uma ideia nova, não é novo. Desde, pelo menos, 1980 que uma facção do feminismo reconhece que, sendo a sua mensagem essencialmente dirigida aos homens, a melhor forma, se não a única, de alcançar os seus objetivos é convencê-los a integrar o movimento.
O que o discurso de Emma traz de novo, e já é muito, é a eficácia publicitária na forma de transmissão da mensagem.  
Com efeito, na era global da comunicação, é possível vender-se qualquer ideia e qualquer princípio, desde que se usem as técnicas de venda certas. 
O feminismo, há que admiti-lo sem pudores, fruto da sua vocação abrangente e consequente dispersão de objetivos, não tem sabido vender-se, dando de si próprio uma imagem que, no seu radicalismo, faz com que as próprias mulheres nele não se revejam, acabando por se afastar.
O que o discurso de Emma teve de bom e de inovador, mais do que apresentar o feminismo como um produto que pode ser consumido por ambos os sexos, foi lembrar-nos que o feminismo é cool.

Vénia ao Pipoco Mais Salgado, o falso misógino de serviço (se não fosse ele, quem?), por se ter disposto a falar do assunto.



domingo, 28 de setembro de 2014

Os Maias


Por mais que me esforce para acabar com estes hábitos burgueses a bordo do navio, é um facto que o reflexo condicionado do tédio próprio dos domingos à tarde sobrevive à imposição de uma jornada sem dias de descanso.
Em sofrimento, a minha tripulação veio pedir-me autorização para improvisar um cinema no convés. Acedi sob condição de ser estritamente proibido comer pipocas, chocolatinhos, batatas fritas e todas essas coisas que transformaram as nossas salas de cinema num calvário de ruminação e cheiro a cantina, a tal ponto que uma boa oportunidade de negócio parece-me ser salas de cinema onde seja proibido comer.
Fizemos um referendo e decidimos, quase democraticamente, piratear Os Maias.  (A meio da eleição decidi enviar SMS insidiosas a fazer campanha por este filme, que, associando o amor à desgraça, contribui para o favorecimento da minha causa).
 Como ainda não há salas de cinema espalhadas pelo alto mar, fizemo-lo sem sombra de culpa. 
Álvaro de Campos fez uma prelecção introdutória sobre a narrativa que só interessou a Gualtiero, o Italiano, o único que não foi obrigado a ler o livro. Os ex reclusos nunca passaram do nono ano mas, sendo certo que além da spanish inquisition, dos impostos e do Natal, também ninguém escapa aos Maias, foram obrigados a lê-lo na prisão, à troca de saídas precárias.
Não sou crítica de cinema e, por isso mesmo, limito-me a dizer que gostei muito do filme, que aquilo dos cenários pintados até acaba por ter alguma graça e que todos, sem exceção, têm interpretações de grande nível.
No final do filme ocorreu-me, com algum desalento pela falta de originalidade da vida, que então, como agora, o drama do amor impossível resolve-se exatamente da mesma forma. Carlos da Maia fez uma longa viagem. Maria Eduarda casou-se. 

Medo da luz

"Podemos facilmente perdoar a uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz".

Platão, sempre preocupado com a minha vida...

sábado, 27 de setembro de 2014

Ao espelho



Espelho

Sou de prata e exata. Não tenho preconceitos.
Absorvo imediatamente tudo o que vejo, tal como é,
Limpo de amor ou desgosto.
Não sou cruel, apenas verdadeira- 
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
A maior parte do tempo medito de encontro à parede.
É rosa, com manchas. Olhei-a tanto
Que penso que já faz parte do meu coração. Mas desvanece-se. 
Rostos e escuridão separam-nos uma e outra vez. 

Agora sou um lago. Uma mulher curva-se sobre mim,
Procurando no meu leito por aquilo que realmente é. 
Então, volta-se para essas mentirosas, as velas ou a lua. 
Vejo-lhe as costas e espelho-as fielmente. 
Ela recompensa-me com lágrimas e com a tremura nas mãos.
Sou importante para ela. Vai e vem.
Em cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão. 
Dentro de mim afogou uma menina e dentro de mim, dia após dia, uma velha ergue-se sobre ela, como um peixe terrível. 

Sylvia Plath 
(Tradução minha)

MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, just truthful -
The eye of a little god, four cournered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

Alerta laranja

Podes esperar pela tempestade esticada num lounge de camas brancas e jazz electrónico, com os pés enterrados na areia e os cabelos cheios de sal. Mas enquanto cospes os restos da hortelã do sumo e juras que à tua frente não existe uma nuvem, não ignoras a formação negra que se adensa nas tuas costas. 
Podes acomodar-te na espreguiçadeira, retomar o verso de um poema repetido, desviar-te dois centímetros da sombra.
Mas continuas à espera da tempestade.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Antes que setembro morra




Comprar um leque colorido e usá-lo muito em público.
Acreditar que se pode ser uma pessoa diferente por se ter um leque colorido.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Diário de Bordo

Por longos trinta dias estivemos, no mais absoluto dos sigilos, embarcação, piratas e animais, estacionados na marina do Parque das Nações.
As razões são complexas e qualquer tentativa de as explicar sairia frustrada já que há verdades, sobretudo verdades motivacionais, que só o decurso do tempo tem a paciência de aclarar.
À tripulação disse apenas que, após dois anos de dura vida marítima, mereciam umas férias junto dos familiares e amigos. Disse-lhes que não o decidia por generosidade, mas antes por saber que tais contactos teriam a virtualidade de lhes revigorar a vontade de se manterem em fuga por, pelo menos, outros dois anos.
Mas este mês sabático foi determinado por causas muito mais terríveis. Desde o dia em que aterrei em Nova Iorque tenho estado acometida por uma silenciosa crise existencial que chegou a fazer perigar a minha carreira de Pirata.
O contacto com a civilização capitalista, as lojas da quinta avenida, os brunch do bryant park, as montras com modelos vivos da Abercrombie, as festas nos terraços de Manhattan, os almocinhos na esplanada em frente ao lago do central park, começaram a fazer-me duvidar da utilidade da minha missão, obrigando-me a autocríticas destrutivas centradas numa certa comparação com a figura de Ahab, o capitão louco e a sua obsessão pela Moby Dick.
O amor, nunca o escondi, é a minha miserável baleia branca. 
Dedicar a vida à sua destruição é propósito que não se questiona a bordo de um navio pirata onde a tripulação masculina é pouco amiga do banho, maioritariamente cadastrada e cuidadosamente escolhida pela sua fealdade. 
Mas em Nova Iorque vi-me exposta à propaganda capitalista do amor, a um Eros alto, musculoso e de caracóis mais louros e brilhantes, arco de design art decor, que domina a utilização de corações pintados nos prédios com mensagens discretas e sublimares a implorar por "love me". 
Os pérfidos efeitos da publicidade massiva ao amor abateram-se sobre mim ainda antes do jet lag se ter esfumado. E de repente, a indomável vontade de erguer um sabre contra tudo o que se assemelhasse a um coração palpitante, deu lugar à tenebrosa compulsão por revistas espanholas de noivas, encomendadas online. 
Somos sempre salvos pelos outros e é essa, afinal, a única razão pela qual não eremitamos definitivamente. 
Quando vi o meu olhar apaixonado espelhado no horror e pasmo da minha tripulação, percebi que estava perdida. 
Rumámos na mesma manhã a Lisboa, comigo escondida na minha camarata a experimentar véus de noiva, a copiar citações roubadas da internet para cartões vermelhos em forma de coração e a assistir compulsivamente a doses inumanas de episódios de telenovelas venezuelanas.
Três angustiantes semanas depois, a Pirata que há em mim estrangulou a gémea fofinha que me roubou o lugar no voo Nova Iorque - Lisboa.
Eu e estes bravos tripulantes partimos ontem. Em direção ao terror e ao saque e à glória e ao domínio dos mares. Todos cada vez mais fugitivos. Fugitivos, sobretudo, desse medo que vem do chão. 
Todos cada vez mais Piratas.