domingo, 12 de janeiro de 2014

Comunicações Intergaláticas

É irritante que continues a assaltar-me o espírito com a eterna novidade da tua não existência em momentos inusitados. Como hoje, enquanto comia morangos com iogurte grego, em pé, em frente ao balcão da cozinha. Agora há morangos todo o ano. Disseram-me os teus olhos de morto dissimulado, como se haver morangos todo o ano fosse um sintoma de uma sociedade onde nenhum homem de bem se deve resignar a viver. A minha primeira reação foi fazer voar na tua direção uma colher suja de iogurte. O que talvez tivesse feito se não se desse o caso de só ter empregada doméstica dois dias por semana e não fazer ideia do sítio onde ela esconde de mim os esfregões. Aposto que no topo de um armário onde bem sabe que eu não chego. As empregadas vingam-se de nós como podem. Esta abusa do facto de ser muito mais alta do que eu. Com a colher ainda espetada na taça voltei-me para a memória do teu sorriso trocista. Demorou alguns segundos a materializar-se. O tempo é inimigo dos mortos. Rouba-lhes tudo, até a limpidez da memória nos olhos dos outros.
Correu mais um ano sobre o dia em que morreste. Este ano fomos poupados às exéquias públicas do costume e o teu rosto congelado não saltou das páginas dos jornais nem do ecrã do computador, como que a dizer Cucu atrás da esquina da porta. Já te tinha dito, o tempo é inimigo dos mortos. Tu, que tinhas a mania que sabias tudo, deverias ter contado com esse pormenor. Aposto que tem menos graça morrer quando se morre mesmo. Para além do mais, parece-me agora improvável que dêem o teu nome a uma rua. Nenhuma conta da EDP com o teu nome no endereço. Quanto mais uma carta de amor.
Claro que ainda não te perdoei. Claro que até já desisti de algum dia te vir a perdoar. A frase mais honesta que li escrita sobre ti, dizia que deverias ter pensado em nós.
Morreres-nos não é coisa que te possamos aturar. 
Terás que viver com este rancor.

1 comentário:

  1. O tempo pode ser inimigo dos mortos, mas é o único bordão de apoio dos que ficam para trás. Pode demorar anos, mas chegará a altura em que as lembranças trarão sorrisos. Beijinho.

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