terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Diário de Bordo # 9

A tragédia humana abateu-se sobre esta embarcação corsária. 
Fui tão criteriosa e certeira na escolha de uma tripulação de alma genuinamente Pirata que nem os vícios lhes escaparam. Sobretudo esses.
O último plano era passarmos o final do ano na marina do Mónaco, sequestrarmos todos os novo-ricos que pudessemos e contribuir para os aliviar do seu detestável estatuto tornando-os menos ricos. Era um projeto tão bom e com uma consciência social tão desenvolvida que chegámos a pensar em candidatar-nos a um daqueles fundos europeus de solidariedade social, coisa que só não fizemos porque nos exigiram contabilidade organizada, certificação de qualidade e uma série de outras burocracias pouco compatíveis com a prática criminosa.
Sucede que esta brava gente encontrou nas roletas do Mónaco o mais perfeito catalisador da sua natureza viciosa. Meia hora depois do desembarque, aproveitando-se da minha momentânea distração causada pelo esforço intelectual de conseguir perceber alguma coisa daquilo que o Joyce se pôs a escrever no Ulysses, deixaram-se viciar no vil jogo.
Lá pela página 105 comecei a estranhar o silêncio e ocorreu-me que há seis luas que não punha a vista em cima de nenhum deles. Mas considerando que se interrompesse ali a leitura teria que começar tudo do início, decidi imbuir-me de um otimismo infantil e acreditar que tinham apenas ido em excursão a Cannes inteirar-se do programa do próximo festival de cinema. 
Estava eu selvaticamente a dobrar o canto superior direito da página 183, o que deve ter acontecido mais três ou quatro luas depois da sexta, quando me entraram pelo navio dois chineses empunhando uma ordem judicial de penhora da chaise long Philippe Starck, de cinco barris de rum e do papagaio emprestado.
Os desgraçados perderam no jogo todo o dinheiro que ganhámos com a venda do crude e depois de  ficarem sem crédito no casino começaram a apostar pernas de paus, ganchos, sabres, tapa-olhos, lenços e respetivos animais em bancas de jogo improvisadas no meio da rua.
Lá tive que pousar o livro maldito e ir em busca de uma tripulação que, outrora opulenta, nutrida e vigorosa, encontrei transformada num grupo de maltrapilhos, semi-nus, de olhar lunático e desorientado.
Consegui atraí-los para o navio com a promessa de uma jogatana de poker, trancá-los no porão e abandonar este antro de pecado que nos arruinou a todos.
Agora estou sentada na chaise long que recuperei aos chineses depois de entregar em garantia nada menos que a pequena cutxi e não tenciono levantar-me daqui enquanto não chegar à página 502.
A miséria material é o módico preço da elevação espiritual. 


6 comentários:

  1. Lamento informar que o papagaio emprestado (a caturra de Querida Mãezinha) bateu a pata, que é como quem diz finou-se…faleceu…

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    1. Querida sexinho. Lamento informar que a morte foi proibida neste blogue. Essa ave está de boa saúde e penhorada.

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    2. Ah!
      Tanto melhor; vou já a correr dar as boas novas a Querida Mãezinha!
      (e fico assim desde já dispensada de lhe arranjar um bichinho substituto - que ia sobrar para mim)

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  2. Quer dizer, pensando melhor... Será que podemos atribuir a culpa aos chineses e pedir uma indemnização?

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  3. O problema foi os Grimaldi. São piratas há gerações e levaram a melhor às intenções de saque da tripulação. Faz- me lembrar o Ocean'12 . A malandragem foi toda "de cana" , mas no fim deu a volta por cima, ou não fossem malandros de categoria. Aye, Captain Cooka !

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