terça-feira, 1 de julho de 2014

Diário de Bordo

Na vida, e este navio é igual à vida mas em versão ligeiramente bizarra, os objetivos atingem-se mais ou menos por acaso e só por mera coincidência estatística na proporção do esforço meritório empregue. 
Fiquei pasmada quando percebi que, apesar do pouco que temos feito para realizar a nossa missão de atemorizar o mundo e granjear a fama, já ouviram falar de nós na Argentina.
Álvaro de Campos interrompeu-me o pequeno almoço de salada de frutas com iogurte e mel para me entregar nada menos do que uma carta de Jorge Luís Borges.
Aparentemente, Borges tem um amigo Pirata apanhado nas malhas do desemprego corsário e decidiu escrever-me para me meter uma cunha.
O candidato chama-se Egil Skallagrimsson e, segundo Borges, tem o seguinte curriculum: 

"A sua história abarca o Norte: a Islândia, onde nasceu no início do século X, a Noruega, a Inglaterra, o Báltico e o Atlântico. Foi hábil no manejo da espada, com a qual matou muitos homens, e no manejo da métrica e da intrincada metáfora. Com sete anos já tinha composto o seu primeiro poema, no qual pedia à mãe que lhe desse um navio comprido e bonitos remos para para sulcar o mar e fustigar as costas e matar aqueles que o enfrentassem. Nas antologias perdura o "Resgate da Cabeça", que na cidade de Iorque lhe salvou a vida, e uma ode que celebra a vitória saxónica de Brunangurh, na qual entreteceu uma elegia para chorar a morte de Thorolf, seu irmão, que caíra durante a batalha e a quem deu sepultura. Fugitivo da Noruega, gravou numa caveira de cavalo uma maldição de duas estrofes de setenta e duas runas cada uma, número que lhe conferiu uma virtude que não tardaria a cumprir-se. Era iracundo como Aquiles e cobiçoso. (...)"

Foi nesta altura que interrompi a leitura da carta, com os dedos tremeluzentes e as pernas bambas diante da magnífica perspetiva de ter entre nós um mix Pirata/Poeta iracundo e cobiçoso que desde os sete anos sonha fustigar até ao pó inocentes povoações costeiras.
Mas logo que levantei os olhos do papel pardo vislumbrei a minha tripulação embrenhada na sua heróica atividade de apanhar banhos de sol e percebi que talvez não tenha trabalho para Egil Skallagrimsson.
Ainda me ocorreu contrata-lo para nos espalhar protetor solar nas costas, mas logo reparei que Borges anexou uma fotografia do candidato:

Terei de escrever-lhe a explicar que Skallagrimsson tem excesso de qualificações.

(In, Biblioteca Pessoal, Quetzal)

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  2. Isto de receber missivas do além, arrepia até à medula, mesmo uma pirata wannabe. Mas quem sabe ele não era assim tão sanguinário e pelo contrário, doce e delicado como uma flor... Um homem com um máscara...

    By sun and moon
    I journeyed west,
    My sea-borne tune
    From Odin's breast,
    My song-ship packed
    With poet's art:
    Its word-keel cracked
    The frozen heart.

    Beijinho:):)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. (...)
      The scream of swords,
      The clash of shields,
      These are true words
      On battlefields:
      Man sees his death
      Frozen in dreams,
      But Eirik's breath
      Frees battle-streams.

      Eliminar
  3. Estas crónicas de piratas deixam-se ler como novelas.

    Boa noite, Cuca :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. novelas?? O caríssimo Xilre não insinua que isto possa ser menos do que a mais pura realidade, pois não? :)

      Eliminar
    2. Claro que não: é inegável que os factos não ocorreram precisamente assim; é inegável que, embora de modo menos dramático, ocorreram substancialmente assim.

      Eliminar
  4. Acho incrível que me deixes sempre ali ao sol no convés... o dinheirão que já gastei em hidratantes anti-rugas...

    (espero que, ao menos, me ponhas de chapéu de abas largas)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se quiseres até contrato o skallagrimsson só para te tratar da pele. Para mim não o quero, que é feio como um orc...

      Eliminar