quinta-feira, 30 de abril de 2015

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Dos sonhos maus

Fui acordada pelas asas aflitas do pássaro que, nos meus sonhos, entrou nessa casa em ruínas, sobre o mar, e procurou a janela despida de vidros de encontro à parede cega. 
Poderia dizer que onde um dia estiveram os teus braços abertos, ficaram as asas desesperadas de um pássaro que por engano se aprisionou e em breve morrerá. 
Morre-se da violência que se imprime à necessidade de nos libertarmos. 
Mas o sonho pertence-me e sou demasiado egoísta para sonhar com qualquer coisa além de mim.
És ausente do sonho. Percebo que o pássaro que no desespero da necessidade do infinito azul tatua as paredes das ruínas com o seu próprio sangue, sou eu. 

domingo, 26 de abril de 2015

Vou procurar um coelacanto

Enquanto a noite se arrasta lentamente, 
de pé, na minha varanda, 
reparo que há uma lua pintada 
na janela do quinto andar. 
E é Plena e é Perfeita. 
Tem as dimensões exatas que teria a lua 
se vista daqui. 
Mas é pintada. 
Não é a lua. 
É uma imagem que projeta a ideia da lua.





Diário de Bordo - O header novo

No mais completo espírito democrático reunimo-nos nas chaise long da piscina do convés, para referendarmos os possíveis festejos daquilo que se convencionou ser o dia da liberdade. 
Formei uma lista, composta apenas por mim, que se opôs aos festejos. Recorri ao fraco argumento de que sendo nós Piratas, consabidamente as mais livres criaturas do universo, todos os nossos dias são dias de liberdade e de revolução. Também havia o problema de como arranjar cravos estando ancorados ao largo da costa da Sardenha, mas decidi omitir essa parte para evitar ser acusada de burguesa comodista e reacionária. 
Ninguém quis saber.
A outra lista, da qual fez parte toda a tripulação, propôs cravos espetados na ponta dos sabres, samarras alentejanas, declamação contínua do mesmo poema de Sofia de manhã à noite, Grandola Vila Morena on repeat, um comício de luta contra o poder instalado (eu, portanto), e uma reformulação do jogo do amigo secreto, de acordo com a qual cada um de nós teria que libertar o amigo sorteado de uma coisa qualquer. 
No fim do sufrágio, os insuspeitos ex-presidiários contaram os votos e concluíram que ganhou a lista pro 25 de abril por unanimidade. 
Vieram os cravos diretamente de um cemitério Sardo e fez-se a festa. 
Calhou-me em sorte ser amiga secreta de Álvaro de Campos a quem libertei do barril de rum que o trazia sequestrado há dois dias.
A minha amiga secreta foi a Palmier Encoberto, essa Mary Read disfarçada de caçadora de flamingos da 5th Avenue. 
Libertou-me daquele baú cheio de pedaços de memórias estranhas onde há anos estava entalada, nua, descalça e de toca de banho, a fazer bolas de sabão. Deu-me o meu novo header, onde nem sequer faltam uns fabulosos Louboutin.
E assim cumpriu-se abril. 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Auto-suficiência

Sentei-me no divã e fingi ouvir-me durante três entediantes quartos de hora enquanto me debatia com a problemática da escolha do prato para o jantar. 
Ouvi o suficiente para perceber que as lamúrias relacionavam-se com uma insistente sensação de tédio; a banal sisma na inutilidade inerente ao processo de existência; uma fobia psicótica na perda do controlo de qualquer coisa inexplicável; a desvontade para as coisas em geral.
Ainda sem ter conseguido decidir-me entre a carne e o peixe, fui fazendo uns humm-huns concordantes, apenas para provar que estava atenta. 
Ocasionalmente, e não com pouco esforço, centrei a atenção na ladaínha abstrata das angústias existenciais que, para dizer a verdade, pareceu-me um decalque de um monólogo roubado a um mau filme francês. 
Já irritada por não conseguir decidir-me quanto ao jantar, sugeri-me que concretizasse. 
Foi uma maldade. Os pacientes raramente conseguem concretizar a fonte das suas dores psicossomáticas e ficam ali embasbacados sem saber o que dizer, indecisos entre inventar qualquer tragédia ou admitir que o seu estado é um capricho de burgueses a quem o mimo tornou insatisfeitos.
Uma vez que seria ridiculo mentir-me, optei por me me calar. 

Prescrevi-me uma dieta à base de Dickens e Twain. Proibi-me Pavese e Foster Wallace. Sugeri chocolate sem restrições e aquisição de vários pares de sapatos novos. Também recomendei atividade física, mas recebi de volta uma expressão que me retirou imediatamente quaisquer ilusões quanto ao acatamento desta última instrução. 
Agradeci-me desconfiada e perguntei quando teria de voltar.
Respondi-me que não o fizesse enquanto ainda conseguisse dormir. Vem nos livros que ninguém enlouquece antes de deixar de dormir. Pode sempre confiar-se numa mente treinada para cumprir trâmites processuais. 
Como ainda não tinha conseguido escolher o que queria jantar, aproveitei os cem euros que cobrei pela consulta e decidi ir gastá-los no restaurante. 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Lições de pintura

A paixão:



A ternura:

Jackson Pollock

Do que vou aprendendo

O oposto da paixão não é o ódio nem o arrependimento.
É a ternura.


terça-feira, 21 de abril de 2015

Vanitas

Desceu sobre nós a mais profunda e a mais mortal das secas dos séculos - a do conhecimento íntimo da vacuidade de todos os esforços e da vaidade de todos os propósitos.

Fernando Pessoa 

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Até à eternidade



Num daqueles fins de tarde de chuva morrinha que se cola aos vidros, uniu-os um poeta. E o que os poetas unem, sob conjugações astrais abençoadas pela chuva morrinha que se cola aos vidros, nem os deuses separam. 
Nunca equacionaram ato menos dramático do que a fuga. Partilhavam um desprezo profundo pelas soluções prosaicas e uma paixão doentia pelos clichés românticos. Fugir afigurou-se-lhes o caminho imperativo e inquestionável que manteria incólume um certo sentido de honra embrulhado nas rendas de outros séculos.
Debruçados sobre o velho mapa mundi que desdobravam no chão das salas, fugiram inúmeras vezes. 
Numa manhã de junho, vestidos de riscas azuis, partiram num veleiro, carregados de arcas de madeira de mogno, onde transportaram livros e peças do serviço rosenthal. Levaram uma tripulação e um criado que todas as tardes lhes servia, às cinco em ponto, o chá de gengibre acompanhado por scones com canela. 
Mas cedo se fartaram dos caprichos do mar e da presença dos outros, que os distraíam das duas únicas atividades que consideravam dignas: adorarem-se um ao outro e perseguirem o projeto de ler todas as coisas que conseguissem.
Fugiram outra vez. Vestidos do melhor linho branco, desprovidos de porcelanas e de criado, desembarcaram numa das praias da Austrália. Assenhoriaram-se de uma vivenda em frente ao mar e testemunharam um uníssono e contínuo por-do-sol do outro lado de qualquer mundo.
Mas uma noite ela sonhou com carrosséis que, na direção das luzes, se elevam no crepúsculo.
Voaram para o Inverno de Paris. Trocaram bilhetes de amor escritos a azul permanente sob o logotipo do Ritz e ensaiaram amizade com os artistas de Montmartre que ele gostava de ver falharem na impossível reprodução do sorriso dela.
Na tarde em que se encontraram sob o grande cartaz que anunciava a Milonga da noite, caía neve na torre e ele disse-lhe que estava na altura de partirem.
Em Buenos Aires, viveram em duas assoalhadas de chão de madeira corrido, por cima de uma velha escola de dança. Nas vielas esconsas da noite, entre as putas, os bêbados e uma rosa vermelha, ensaiaram os primeiros passos do tango que lhes corria nas veias. Aos sábados de manhã, buscavam entre as lojas de antiguidades a mais apropriada cadeira de baloiço para a leitura de Borges. 
Quando gastaram as capas dos sapatos de dança, mudaram-se para São Petersburgo onde ele a fez  czarina num palácio de verão e senhora do mais invejado dos jardim de cheiros. Às quintas-feiras, depois do bailado, ceavam shots de vodka nos camarins do teatro.
O frio devolveu-os ao sul da Europa, onde não precisaram de mais do que uma gruta escavada pelo mar, alguns tapetes persas e as velas que acendiam nas raras noites sem lua. Porque locais no universo existem onde até a lua é presença quase constante.

Morreram como morrem os Homens. Entre o ferro frio de uma assética cama de hospital ou a tepidez complacente das molduras na parede de desconhecidos rostos que alguém nos diz que foram nossos. Despacharam-lhes os restos mãos que não podiam saber que eles ali já não estavam. Que há muitos anos atrás tinham decidido abandonar o corpo para exilarem a alma no amor. 
Fugitivos nas águas do mediterrâneo; numa praia da Austrália; nas avenidas de Paris; nas vielas de Buenos Aires; nos Palácios de São Peterburgo ou na gruta esquecida de uma praia do sul da Europa. 
Onde, salvando a honra, viveram juntos até à eternidade. 

sábado, 18 de abril de 2015

Ensinamentos



Ensinou-me, numa madrugada, enquanto descíamos a montanha na pick-up azul céu, vidros abertos, nariz coberto de pó, volume das colunas no máximo, olhos nos pinheiros que se aproximavam à velocidade do abismo, cigarros em ambas as mãos esquerdas, que a faixa mais bonita dos álbuns é sempre a décima primeira.
Também me ensinou o firmamento, as marés, a composição básica do jazz, o sentido dos blues, a anatomia dos sonhos e como fazer molho cocktail.
Mas nada me foi tão útil quanto a aprendizagem dessa primeira revelação. 
Ensinou-me a génese da fé. 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Anti-matéria

Recolhi todas as palavras num cesto tecido de mil estrelas. Deixei a sala vazia. Os livros transformados em páginas nuas. As memórias reduzidas à mímica das emoções. 
Depois recolhi cada uma das notas musicais e ainda o som do vento. Até restar apenas o silêncio. 
Tenho um cesto carregado da mais pura e inútil prata.
Troco-o por um instante de pele.

Pavese disse-o melhor

Vens sempre do mar 
e do mar tens a voz rouca,
e sempre os olhos secretos,
de água viva entre silvas,
A fronte baixa como
um céu de nuvens baixas.
De cada vez renasces 
como uma coisa antiga 
e selvagem, que o coração 
já sabia e cala.

De cada vez é um rasgão, 
de cada vez é a morte.
Combatemo-nos sempre. 
Quem aceita o choque
tomou o gosto à morte 
e leva-o no sangue.
Como bons inimigos 
que não mais se odeiam
somos uma mesma
voz, uma mesma pena 
e vivemos ofendidos 
sob um céu miserável. 
Entre nós não há a insídia, 
não há coisas inúteis - 
combateremos sempre. 

Combateremos ainda, 
combateremos sempre.
Pois perseguimos o sono
da morte lado a lado,
e a nossa voz é rouca
a fronte baixa e selvagem 
e um céu idêntico.
Fomos feitos para isso.
Se um de nós cede ao choque,
segue uma longa noite
que não é paz nem trégua 
e não é morte verdadeira.
Tu já não existes. Os braços 
agitam-se em vão.

Até que o coração nos trema.
Disseram um dos teus nomes.
A morte recomeça.
Coisa ignota e selvagem
renasceste do mar.

Cesare Pavese, in Trabalhar Cansa 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Armistícios

Assino o armistício temporário com uma caneta de purpurinas feitas dos restos da lua que esmagámos. 
Desenho as letras do nome que me deste como se nunca tivesse tido nenhum outro. Como se fosse eu própria uma criação tua. Parida desses dedos enormes de que, hoje, sou simples extensão. 
Amanhã continuaremos a rasgar o passado com o mesmo fervor. 
A incendiar a terra crua para que nela apenas medre um futuro de cinzas estéreis. 
Estenderemos sob o sol o campo de batalha onde vamos destruindo o mundo na eficiência e teimosia de dois bárbaros deuses gregos. 
Mas por hoje assino o armistício temporário. 
Estou cansada e o espaço que fica entre o teu pescoço e a clavícula  é a única nuvem onde me sinto capaz de dormir.
É assim, no sono, que sei que sei que sou, sobretudo, sempre, a tua mulher. 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Ao menos pudéssemos

Já estava sentada naquela sala há mais de quatro horas seguidas a ouvir mentiras quando me lembrei de um verso de Pavese:

Ao menos pudéssemos partir, 
rebentar de fome em liberdade, dizer não 
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos.

E então, enquanto fingia ouvir as pessoas e escrevia o verso entre as linhas de uma qualquer estória de maldade humana, imaginei que me levantava da sala em absoluto silêncio, sem olhar para nenhum deles; imaginei deixá-los sozinhos, sem interlocutor para as suas mentiras;  não me dar sequer ao trabalho de fechar a porta atrás de mim; desaparecer por um dos corredores labirínticos; imaginei sair para o sol, em liberdade.
E durante aqueles sessenta segundos, antes de entregar as mãos às algemas e devolver a atenção à sala, fui profunda e genuinamente feliz. 


domingo, 12 de abril de 2015

Manual de sobrevivência social

- Viva o Slumkey! - rugiram os homens honestos e independentes?
- Viva o Slumkey! - ecoou o Sr. Pickwick, tirando o chapéu. 
- Morra o Fizkin! - bradou a multidão.
- Apoiado! - gritou o Sr. Pickwick.
- Urra! 
E a isto seguiu-se outro bramido, como o das bestas enjauladas, quando o elefante toca a sineta para a carne crua.
- Quem é o Slumkey? - sussurrou o Sr. Tupman.
- Sei lá eu?  - respondeu o Sr. Pickwick no mesmo tom. - Caluda. Não faça perguntas. Nestas alturas o melhor é fazer sempre o que faz a multidão.
- Então e se houver duas multidões? - inquiriu o Sr. Snodgrass.
- Grita-se com a maior - replicou o Sr. Pickwick.


In, Os Cadernos de Pickwick, Charles Dickens, Tinta da China.

Tempos mortos

Estavam as duas sentadas lado a lado em frente ao Tejo.
Uma disse que agora tinha muito tempo para ler, já que tudo o que fazia na vida era trabalhar e ler.
A outra disse que não, que não tinha tempo para ler, já que tudo o que fazia na vida era trabalhar e deslocar-se entre o trabalho e a casa. Mas que aproveitava bem as viagens. Aproveitava-as para chorar.
A primeira voltou o rosto para a segunda e fez um gesto claramente aprovador do método de organização:
- Fazes bem. Sempre utilizas os tempos mortos.

Itinerância espiritual

Nós, os itinerantes, pese embora estejamos sempre a informar que estamos a chegar, na verdade, estamos sempre quase a partir.
E só fazemos sentido numa sala de embarque de aeroporto ou numa estação de serviço da auto-estrada. Momento único em que já não estamos em falta e ainda não estamos em falta.

Take me to the church


Take me to church
I'll worship like a dog at the shrine of your lies
I'll tell you my sins and you can sharpen your knife
Offer me that deathless death
Good God, let me give you my life

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Apenas uma experiência

“For I feel like an experiment, I feel exactly like an experiment; it would be impossible for a person to feel more like an experiment than I do, and so I am coming to feel convinced that that is what I AM—an experiment; just an experiment, and nothing more.”

Excerto de: Twain, Mark. “Eve's Diary, Complete.” iBooks. 

Queixa-se Eva, a primeira mulher, e eu diria que no caso dela queixa-se fundadamente, de ser apenas uma experiência.
Talvez na falta de melhor modelo todas as mulheres tenham sido criadas à sua semelhança. Talvez a interminável sucessão de cópias seja tão perfeita que ao decalque nem sequer falte essa angustiante sensação da original.
Precisei de ler Mark Twain para conseguir catalogar esta sensação que tantas vezes me perturba; a sensação de ser apenas uma experiência. 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Outro Noturno

Enquanto a noite se levantava...

terça-feira, 7 de abril de 2015

Voltou o vento sueste

O vento levará tudo. 
Por ora são as folhas das árvores que ainda esta manhã estavam espalhadas pelo chão; os papéis de rebuçados das crianças; as placas das imobiliárias nos prédios para venda; as roupas que os incautos abandonaram nos estendais; os chapéus dos turistas que ainda se atrevem a sair à rua. 
Mas é apenas o primeiro dia.
As gaivotas já batem de encontro aos vidros da minha varanda e as moscas suicidam-se atirando-se de uma nuvem de asas fechadas. Os cães de todas as ruas lançam avisos inúteis.
Tranco as portadas; corro os estores para que nem a luz entre;  verifico a provisão de mantimentos; fecho os livros; escondo-me entre as cobertas. 
Vem aí o Sudeste. 
Os meus dedos dos pés contorcem-se; o olho esquerdo lança-se numa frenética atividade espasmódica; a unha do polegar cresceu cinco milímetros na última hora. Os cabelos contrariam todas as conhecidas leis da gravidade. 
Cá dentro, foram os pensamentos que se desalinharam, saíram da formatura e agruparam-se em milícias rebeldes. Partirão ao ritmo do vento e é provável que nunca mais voltem. Não tenho forças para correr atrás deles. Sei que é uma batalha perdida.
Já passei por outros suestes.
Amanhã acordaremos todos loucos. 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Nocturno

A colina é nocturna, no céu claro.
Nela se enquadra a tua cabeça, que mal se move
e acompanha o céu. És como uma nuvem
entrevista pelos ramos. Ri-se-te nos olhos
a estranheza de um céu que não é teu.

A colina de terra e folhas encerra
com a sua negra massa o teu olhar vivo,
a tua boca tem a prega de uma doce cavidade
no meio das encostas distantes. Pareces brincar
à grande colina e à claridade do céu: 
para me dares prazer, repetes a paisagem antiga
e torna-la mais pura.

             Mas vives noutro lugar.
O teu terno sangue fez-se noutro lugar.
As palavras que dizes não têm comparação 
com a tristeza áspera deste céu.
És apenas uma nuvem dulcíssima, branca,
que uma noite ficou presa nos ramos antigos.


Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Livros Cotovia, 81

domingo, 5 de abril de 2015

Uma falha no sistema

A insónia desde as cinco das manhã. Uma sala de hoje com o cheiro de ontem. O copo que me caiu aos pés. O som do ladrar dos cães. O café dos outros dias fechado. A chuva a colar-se à cara. O carro bloqueado no parque. A mulher que não se calava. A fila no multibanco. Aquela sensação de não saber o que fazer com o corpo. Uma meia calçada do avesso. 
Até o cérebro mais domesticado pode sofrer um colapso nas suas estruturas de controlo dos níveis de otimismo essenciais ao funcionamento do sistema. Uma meia calçada do avesso, percebi-o hoje, pode ser fatal. 

Domingo de Páscoa

Nós, os párias desta terra, somos muito fáceis de identificar. 
Somos aqueles que marcámos cabeleireiro para a hora do almoço de domingo de Páscoa. 
Conto cinco, para além de mim própria. 

sábado, 4 de abril de 2015

Diário de Bordo

Da Costa de África, por onde navegámos durante um par de meses até enchermos os cofres com diamantes roubados, trouxe, além das gemas, a malária. 
A febre começou numa noite de lua cheia e ficou pelos menos até que outra lua se esvaziasse num céu feito de basalto negro e estrelas. 
Estranhamente, estes bárbaros que são a minha tripulação, não só não aproveitaram a ocasião para me atirarem ao mar e roubarem o navio, como até cuidaram razoavelmente de mim. Passei um mês e meio deitada na minha cama num delírio apenas interrompido pelas ressacas de Gin tónico que provavelmente os bloggers, são sempre eles a fonte dos meus problemas, leram na internet que era bom para a malária, decindindo ignorar aquela parte do quinino como factor preventivo da doença. 
No meu delírio terei falado da Ilha do meu passado e de um Pirata que desertou da vida dos mares para morrer em terra na falta de glória de um final de existência burguês e manchado pelo pecado da vulgaridade.
Gualtiero, o Italiano, o único de nós que sempre se move pelo coração, aguçando o faro na direção de uma daquelas histórias de amor, desgraça e destruição, convenceu os outros a rumarem à minha Ilha, com o pretexto de que se fosse para morrer, seria de esperar que gostasse de fazê-lo no sítio onde aparentemente nunca mais teria deixado de estar.
Foi assim que uma noite, no intervalo entre um brufen e um benuron, arrastada até ao convés e perante o ar expectante da tripulação, deparei-me com a linha da costa da minha Ilha. Ali estavam, cada enseada, cada ilhéu, montanha, cascata e farol, exatamente com a cor e a forma como há vários anos atrás os decorei, que é como quem diz, os guardei no coração. 
Pedi os binóculos e obriguei Andrhiminir, o cozinheiro Pirata - que vocês ingnóbeis leitores nunca perceberam que tem o mesmo nome do cozinheiro dos deuses na mitologia viking, que aqui nada é por acaso - a carregar-me até ao cimo do mastro. 
Dali, entre a fraqueza da febre e a força do vento norte, vi cada um dos rostos dos habitantes da minha Ilha, ocupados a fazerem exatamente aquilo que faziam quando eu estava entre eles e dedicava os meus dias a observá-los. Vi a minha empregada, na casa que foi minha, dobrar com a mesma generosidade os vestidos de seda de outros, vi cada um dos pescadores nas docas de cigarro mordido no canto da boca, vi amassarem o pão que tantas vezes comi, vi todos os sítios onde fui triste e onde fui contente e as mesmas pessoas que foram parte dessa tristeza ou contentamento. Um por um. Desviei a lente do binóculo que tudo vê antes de por ela ser apanhado um antigo Pirata, desertor dos mares, que creio enterrado vivo num cemitério burguês, em local assinalado por uma bonita e branca lápide de mármore fashion. 
Vi tudo o que suportei ver. 
Então desci do mastro e dei a minha primeira ordem em mais de um mês e meio:
-bombardeiem tudo, até que não sobre anjo, lápide, morto, nem fantasma. E depois, é zarpar para o mediterrâneo que se faz primavera.
Nessa noite, antes de recolher à minha cama e expurgar as últimas febres do mosquito, guardei uma vez mais no coração o céu da minha Ilha.
Acordei no mediterrâneo, depois de uma travessia confusa entre os delírios da febre e a realidade das coisas. 
Estavam todos, como sempre, na piscina a apanhar sol.

(Ou de como escreveu Rui Costa num poema que não encontro e portanto mais ou menos cito de cor:
"O gato, comi-o.
Foi a forma que encontrei de o trazer comigo")

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Bílis Negra

Melancolia: escolha o seu tipo.

"A divisão mais aceite é a dos três tipos. O primeiro provem apenas do mal do cérebro e chama-se melancolia da cabeça; o segundo provém por simpatia de todo o corpo, quando todo o temperamento é melancólico; o terceiro surge dos intestinos, fígado, baço, ou da membrana chamada mesentério, que é apelidada de melancolia hipocondríaca ou flatulenta, que Laurens subdivide em três tipos a partir desses três membros; hepático, esplénico e mesentérico. A melancolia amorosa, a que Avicena chama ilishi, e a licantropia, a que chama cucubruth, incluem-se normalmente na melancolia da cabeça." 

Robert Burton, Anatomia da Melancolia, Quetzal (originalmente publicado em 1621)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Autoria moral

Embaixador alemão: - Foi o senhor que fez isso?

Pablo Picasso: - Não. Foram vocês.

RIP


Hoje a liberdade é tida como um direito absoluto. Mas não há liberdade absoluta. A liberdade não é sequer um direito. A liberdade é um dever, um dever fortíssimo. A liberdade é o respeito pelo próximo. O Espinoza dizia: nós supomo-nos livres porque ignoramos as forças que impedem os nossos actos. De maneira que há forças que nos são estranhas, não somos nós. Eu sinto-me um joguete, uma marioneta. Sou conduzido por forças que ignoro. Eu sinto isso, eu pressinto isso

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Antes

Antes de traçarem o mundo a giz e sortearem as duas metades entre ambos, antes de desviarem o curso dos rios e sequestrarem habitantes aos oceanos, antes de aprisionarem os pássaros nas suas rotas de migração, antes de escavarem na terra os túneis por onde fizeram circular o veneno que secou as raízes das árvores estrangeiras, antes de expulsarem do mundo a lua infiel que não se conluiou com nenhum dos dois, antes de obrigarem o sol a dividir-se entre nascente e poente, antes de mandarem arrancar as letras aos poemas e a escala de notas ao som para também disso se privarem um ao outro, antes de terem deixado de dormir para assassinar os sonhos, antes de regarem com gasolina a outra metade do mundo e riscarem na ponta dos dedos o fósforo que o fez explodir, antes de rasgarem ao meio o deus que por acaso encontraram a vaguear na fronteira, antes de verem nos olhos do outro o reflexo do fim, nenhum dos dois conhecia a verdadeira substância do ódio e do amor. 

D.R.E.A.M.E.R.



Cause I was a dreamer
a dandelion prophet
wherever the wind blows
well that's where I'm headed