quarta-feira, 3 de junho de 2015

Anexo ao post anterior

ENFEITAR O PÓ

Se deus quiser, amanhã morrerás 
trespassado por olhos afiados de mortal quebranto
em paz com todos os inimigos
na cruz cravado com cavilhas ferrugentas
e algumas histórias para contar entre amigos
cujos lamentos já escutamos em surdina
era bom rapaz
não fazia mal a uma mosca
tinha uma mãe enraivecida que lhe augurava futuros 
tinha um pai com quatro pernas de ateísmo
e ia todos os domingos à missa
para ficar sentado na última fila a contar bocejos
era um tipo às direitas
amou como só as mulheres traídas sabem amar
de soslaio
pela calada
pendendo para dentro do corpo
à guisa de sufoco sustenido
era destemido quanto baste
para morrer sozinho
e rezava diariamente orações de são francisco
enquanto caminhava descalço sobre a erva
e distraidamente pisava a bosta
do cão que acabara de passear
era tão aluado e distraído
que sonhava com passados vindouros
e construções de areia onde pudesse desfazer-se da própria cabeça
tão cheia
tão inutilmente cheia
de nomes sem fruto
de termos sem cheiro
de ideias sem fito
era uma jóia de pessoa
das que se trazem ao peito
penduradas ao pescoço
um ornamento de família
herança penhorável para execução de factos
que tudo na sua vida foi simplesmente a eito
conforme a situação o exigia
era o tipo de pessoa que gostamos de ter em casa
para enfeitar o pó

Henrique Fialho, Aqui 

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