quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Cópia de segurança

Há pessoas que fazem cópia de segurança do amor, reinstalando-o num aparelho novo após falha técnica do antigo. 
Outras, menos eficientes, perdem todos dados e nunca mais conseguem encontrá-los.


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Ano novo

Ainda os restos do peru jazem em caixas no frigorífico e as luzinhas não se começaram a fundir já o blogger desinspirado se debate com a angústia das listagens de resoluções de ano novo.  E mesmo que o pudor que nos controlou a língua lá pelo Natal não nos impeça agora de declarar oficialmente o nosso ódio absoluto pelos imbecis festejos da passagem de ano, não há como evitar o malfadado tema das listagens ou dos balanços. Por aqui, este ano, decidimos entregar-nos de alma e coração a tudo quando é cliché da época. 
Dispensamos o balanço para não deprimir o leitor e nos desobrigamos da apresentação à insolvência emocional. 
Aqui ficam as resoluções, por ordem de relevância:
- Fechar a boca durante o tempo necessário para perder os três quilos que  me ofereceram pelo Natal;
- Reler as Mil e Uma Noites;
- Ler a bíblia (resolução reincidente de vários natais passados); 
- Começar a correr (resolução fantasiosa em que nem sequer nós próprios conseguimos acreditar); 
- Fotografar mais e melhor;
- Começar a aprender a teatro; 
- Voltar a escrever peças de teatro; 
- Aprender o Claire de Lune no Piano, ainda que em versão aldrabada para iniciados;
- Trabalhar ainda menos (resolução indispensável à realização de qualquer uma das anteriores com exceção da primeira); 
- Conhecer a Escócia;
- Passar a fumar cinco cigarros por dia (resolução de nível de irrealidade equiparado àquela de começar a correr);
- Irritar-me ainda menos do que já me irritei este ano (o que, creio, fará de mim uma criatura para-budista); 
- Sobreviver.

Comunicações intergaláticas

Por aqui morre-se aos magotes nos últimos dias. Deve haver filas, à chegada, lá por essoutra dimensão onde te foste meter. Talvez a sobrelotação faça com que te alojem com o Cohen ou com o George Michael. Poderás tocar com eles. É quase cómico imaginar-te sentado no chão das nuvens, olhar concentrado nas cordas da guitarra, ligeiro abanar na cabeça, sorriso a disfarçar a irritação pela nota falhada. "Os desafinados também têm coração". Sempre achei que tocavas pessimamente. Não me lembro se to disse. Espero tê-lo feito. Devo tê-lo feito. Na época ainda tinha prontidão em reconhecer as falhas dos outros e a presunção de um resto de objetividade. Hoje em dia maravilho-me com qualquer raio que ilumine o negrume ao fundo. Até a tua hipotética carreira póstuma de letrista de pop stars falecidas é coisa capaz de me enternecer.
Entretanto, está prestes a escoar-se outro ano. 
O mundo não ficou melhor nem pior, antes prosseguiu indiferente. Nós, os criadores dos deuses, continuamos exatamente iguais ao que éramos. Movemo-nos empurrados pelo tédio de dias que, em média, têm demasiadas horas. Inventamos missões para justificar a nós próprios o mistério da resiliência. Somos Atlas de dimensões liliputianas.
Posso apenas esperar que o além não seja construído à semelhança do aquém: — Esta infinita sucessão de desencontros. 
E se for, que te dêem Möet e que lhes pagues em poesia. 
Escreve-a nas nuvens. 
Saberei encontrá-la. 

O Rei Verde

O rei verde nasceu muito pobre. Cresceu e quis tomar o mundo. Desceu às franjas da terra e daí várias vezes se reergueu. Enganou. Roubou. Traiu. Destruiu. Dele se chegou a dizer que negociou a alma com o próprio diabo e que o ludibriou. À sua maneira, teve o mundo. Presumo, sem outra prova que não o desconhecimento de quem o não seja, que também ele tenha  sido capaz do bem. 
Morreu há dois dias, esmagado pelo mundo que quis tomar.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Um quadro

É um quadro alegre, com círculos coloridos sob um fundo dourado. Do tom dos sonhos. Pintei-o para enganar a perceção da passagem dos grãos de areia no nó da ampulheta. A espera foi tormentosa, o verde esmeralda difícil de obter, o resultado, um equívoco de dimensões épicas.
Pode-se ser muito feliz apesar da angústia e do erro. Talvez o erro seja, até, a fonte privilegiada daquela forma tão pura de felicidade que nem a angústia ensombra. Para me lembrar de que foi possível, na partida, decidi trazê-lo comigo. 
Nunca o pendurei nas paredes de casa pela simples razão de que não pertence aqui e nem tão pouco me percentece a mim.
Vive no chão, entre outros erros e experiências inacabadas, de costas voltadas para o mundo. 


domingo, 25 de dezembro de 2016

E a vós, homens, lego-vos estas palavras

Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio: pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta...
E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: "Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!"
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! 
O Mandarim, Eça de Queiroz, Edição «Livros do Brasil» Lisboa

Coisas

Todos os anos ofereço a mim própria um presente. Costuma ser o melhor presente que recebo, o que bem se compreende, já que, além de ser a pessoa no mundo que mais gosta de mim,  sou igualmente aquela com quem estou disposta a gastar mais e a quem habitualmente não tenho escrúpulos em satisfazer caprichos. Este ano ofereci-me uma edição decente, esgotada, de As Mil e Uma Noites. Tive algum trabalho para a conseguir mas agora tenho os seis volumes ali aos meus pés, branquinhos com inscrições em persa, e, na alegria da possessão, tenho de fazer um esforço para evitar usá-los como almofada durante a noite.
Eu gosto de ter coisas. Muitas e bonitas. Vou gostar de ter coisas durante toda a minha a vida. Sou, irremediavelmente, esse tipo de pessoa. Como se tem alergia ao marisco, ou se é teimoso, ou se tem mau sentido de orientação, sou uma pessoa que tem prazer em tornar-se proprietária de objetos. 
O meu cão tem o hábito de levar os brinquedos preferidos para a sua cama e, deitando-se de barriga para cima, esfregar as costas nos ditos brinquedos, atividade que, inequivocamente, o deixa muito satisfeito. 
Um qualquer resto de dignidade impede-me de fazer o mesmo com os meus livros novos. Mas, devo admito-lo, era o que me apetecia fazer às Mil e Uma Noites.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Tesouros


Um postal de Salvador da Bahia, com uma bonita morena de cesta de frutas à cabeça; um bilhete de comboio antigo, daqueles cor-de-rosa, da linha Cais do Sodré-Cascais, com destino em Oeiras; um calendário da Escola de Condução Moderna, do ano de 1991. Tudo isto dentro de um exemplar de alfarrabista de O Mandarim, de Eça de Queiroz: o meu mais recente tesouro. 

Movimento Vamos Ajudar a Palmier a Encontrar o Espírito

E já é uma corrente internacional 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Post de Natal para podermos prosseguir a emissão com a programaçãohabitual

Cumprindo uma ancestral tradição com exatamente um ano, este navio ruma agora na direção do Polo Norte, onde contamos aportar amanhã, lá pelas seis da tarde, a tempo de roubarmos todos os presentes que o Pai Natal guarda naquele gigantesco saco com que abastece o mundo. 
Este ano, para que nada falhe, a tripulação foi proibida de beber eggnog...
Lá pela meia noite, teremos as arcas carregadas com todos os sonhos de todas as crianças do universo. Mais do que ricos, seremos livres. 
Aos leitores deste blogue é isso mesmo que se deseja: um Natal cheio de sonhos. 

Portas


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Todas as noites

A insónia mora nos cantos deste quarto. Esconde-se no armário quando me vê entrar. Espera por mim dentro dos bolsos dos casacos. Vem deitar-se ao meu lado depois da minha segunda hora de sono. Juntas, vemos chegar o alvorecer. 
E é só então que nos separamos.
Tu moras dentro da insónia. Escondes-te no seu vértice. Fazes-te sentir pela insídia. Amanhecendo-me. 
Todas as noites. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Solstício de Inverno

Por razões de coerência astrológica, escolhemos o dia mais curto do ano para nos despedirmos. 
Despedimo-nos com a mesma urgência que usaríamos caso as horas restantes, até ao último fio de luz solar, fossem todo o crédito temporal das nossas vidas. 
Não lastimo a pressa na despedida. 
Sobrou-me imenso sol. 

Mercado de Natal

As avenidas estão cheias. Há sacos com laços coloridos pendurados em mangas de Vison. As montras exibem os objetos brilhantes que ainda há meia hora não sabíamos existir e sem os quais já não podemos viver. As luzes estão no ponto perfeito do espalhafato. Há mercados de Natal em várias esquinas e em todos cheira a chocolate e a fritos de Natal. É um cheiro feliz. 
É certo que no passeio da avenida, com a cabeça de encontro à calçada, jaz, não se percebe se vivo ou morto, um homem de meia idade, sapatos rotos e casaco esburacado. 
Mas estamos todos atrasados para o Natal e é até provável que o homem já ali esteja desde a Páscoa.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

domingo, 18 de dezembro de 2016

Cidades indormíveis

A cidade lá me deu o sol; o céu azul; o rio espelhado; a noite iluminada.
Aquilo que nunca tem a generosidade de me dar é uma noite isenta de insónia.

Diário de Bordo

Aleph, o navio pirata, navega agora pelos mares, iluminado do convés ao mastro, assumindo ele próprio a forma de uma enorme árvore de Natal que dança ao ritmo das ondas. 
Houve anos em que tentei proibir o Natal e outros em que fingi não o ver até ser por ele derrubada à saída de um canto mais escuro. Este ano, consciente de que ninguém escapa ao Natal, mudei de estratégia e em vez de esconder os enfeites e redigir regulamentos anti kitsch, decidi antecipar-me a esta valorosa tripulação e ser a primeira a aparecer com as famigeradas luzinhas das lojas dos chineses; neons em forma de estrela; pseudo renas que mais parecem cães com chifres e a habitual panóplia de bolas coloridas. Centrifugada pelo espírito, cometi até a excentricidade de comprar online vários conjuntos de anjos de asinhas de penas e halos dourados, com rosadas caras obesas e caracóis louros. Estão neste momento pendurados por todo o lado e, vistos da gávea, parecem pequenos espanta-gaivotas. 
Esta tarde, a habitual rotina do roubo, da extorsão e do sequestro, cedeu o lugar à instalação do Natal. 
Há qualquer coisa de comovente nesse anacronismo que é ver-se um bando de malfeitores, maioritariamente ateu, ou, pelo menos, suspeitoso da bondade do divino, tão empenhado em replicar cada um dos clichés do Natal. 
Andhriminir fez-nos um chocolate quente com rum; Gualtiero, o Italiano, cozinhou bolachas de gengibre; Álvaro de Campos, que há tanto tempo não aparecia nesta estória, preparou vinho quente; os poetas inventaram novas quadras de Natal; os ex presidiários, como sempre, fizeram o trabalho todo; os bloggers tiraram muitas fotografias, organizaram discussões sobre o melhor local para colocar a estrela e disseram muitas vezes que sabiam montar o Natal melhor do que todos os outros. 
No final do dia, quando a tripulação ainda zanzava pelo novíssimo barco-Natal, kitshezeando em grande animação, sentei-me sozinha no convés, vi a lua, dourada, enorme, baixa, a rasar as ondas do mar, e pensei que, apesar de tudo, tive muita sorte.
No rescaldo do esquecimento, ainda se salvou, mais ou menos imaculado, o Natal. 

sábado, 17 de dezembro de 2016

Dois destinos

A lua viu.
A sombra una
de dois destinos 
projetada nas águas vadias
de um braço de rio domado.

O rio viu.
O circulo completo da lua
iluminar dois destinos 
ensombrados na unidade
da efémera noite.

A sombra viu.
Um rio,
outra lua, 
equação noturna,
dois destinos.
Opostos.




sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Lisboa



Cheguei, antes que a cidade me surpreendesse, a tempo de ver todas as folhas que este outono caíram na minha rua. Caminhei devagarinho pelo tapete amarelo, pisando com especial cuidado as horas caídas da minha ausência. Guardaram-nas, assim no chão, para que ainda as pudesse ver. 
Depois, Lisboa deu por mim: fez-se fria e cinzenta. Como toda a velha amante abandonada.

A fazer as malas para o Natal




terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Fugiram os sonhos

Fugiram os sonhos pela frincha da porta blindada da casa branca, assética, desinfetada. Os sonhos escaparam à higiene, esquivaram-se ao minimalismo, evadiram-se dos antifúngicos. Oprimia-os a ditadura das linhas direitas da arquitetura da existência; os tectos altos; as luzes indiretas para melhor conforto dos olhos míopes. O edifício, de inteligência artificial, racional até aos alicerces, da consistência fria do aço, não era dream friendly. E os sonhos fugiram pela frincha da porta blindada e espalharam-se pelas ruas à procura de um pouco de lixo humano. Acumularam-se em esquinas sombrias. Espreitaram pelas janelas dos tugúrios ocupados por coisas antigas, como o sangue, o suor e as lágrimas. Treparam pelas paredes e enroscaram-se nos pés sujos das pessoas simples.
Não voltarão, os sonhos, a este edifício hermético e eficiente. Expurgado da dor, mas também da esperança. 

domingo, 11 de dezembro de 2016

Expiação (*)

Podia ter enterrado na carne o mais frio dos cilícios; espalhado vidro mal moído e ajoelhado-me sobre ele durante horas a fio; escaldado as solas dos pés nas pedras incandescentes do jardim ou mesmo ter-me perdido num deserto desconhecido e por ele me arrastar até que pelas minhas veias circulasse mais areia do que sangue. Mas em vez de qualquer uma destas boas velhas formas de autoflagelação, fiz a má escolha de ouvi-lo uma última vez mais.


* (também tenho o tal sinal)

Os racionalistas e o amor

Um sapo perguntou, um dia, a uma centopeia qual era a pata que ela pousava primeiro ao andar. E a centopeia nunca mais conseguiu andar.

Afonso Cruz, Mil Anos de Esquecimento, enciclopédia da estória universal, Alfaguara

sábado, 10 de dezembro de 2016

Cedem-se haiku de Bashô



Diga um número de 01 a 1002 e receba um haiku 
(Post em parceria com Matsuo Bashô)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Portas


Sumo de goiaba

— não se enlouquece tudo de uma vez. 
Disse eu ao coelho do relógio pendurado ao pescoço que caminhava para diante e para trás, nervosamente, enquanto proclamava que estávamos todos atrasados. A lagarta, sentada na estante dos livros de poesia, assentiu depois de uma baforada de fumo que inundou o convés e, assim incentivada, repeti como se tivesse acabado de descobrir o segredo da vida eterna: 
— não se enlouquece tudo de uma vez. 
O gato que ri materializou a ponta da cauda e os dentes e projetou uma gargalhada num estilo maléfico e totalmente descontextualizado. 
Olhei à volta para tentar perceber o efeito das minhas palavras na expressão do chapeleiro louco, mas em frente ao seu sumo de goiaba havia apenas uma cadeira vazia. Ouvi a minha voz, em eco, gritar "cortem-lhe a cabeça" e, então, disse-me a lagarta: — "não devias ter mandado cortar-lhe a cabeça". Pensei em iniciar um dissertação sobre Salomé, mas o coelho insistiu que estávamos todos atrasados. 
— para quê? 
Perguntei por perguntar enquanto inspecionava o verniz das unhas, optando por esconder as mãos nos bolsos do vestido.  
O coelho voltou a consultar o relógio e decretou que estávamos irremediavelmente atrasados para a vida. 
— não nos faz falta. 
Disse ao bigode esquerdo do gato que ri quando voltei a ouvir o eco da minha voz: "corteeeeem-lhe a cabeeeeça".

De madrugada acordei com uma insuportável dor na minha própria cabeça e, pela manhã, a primeira coisa que fiz foi proibir Adhrimhinnir de voltar a servir risoto de cogumelos selvagens. 
Mas estava escrito que o dia não terminaria sem receber um postal do capitão Sparrow. Continha um smiley a boiar no verso branco de uma fotografia do porto de Tortuga. 
Foi assim que soube que me esqueceu.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

dezembro

Dizem-me que em Lisboa já é Natal. 
Aqui, neste navio, não há meses nem estações. Só dias seguidos por noites seguidas por dias, embalados pelas ondas do mar. 
Reparei que, entretanto, todos deixámos de envelhecer. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Kübler-Ross

Com o tempo, abandona-nos o deplorável vício da recriação de um concreto quotidiano alheio. 
Foi assim que deixei de vê-lo caminhar, desajeitado, na direção do mar. Ou de ouvir a inoportuna gargalhada infantil. Ou de imaginar a sombra das costas projetada pela luz das velas; os dedos a arranharem as cordas da guitarra; a forma inusitada de pegar na chávena do café; uma ruga vertical na testa a anunciar um período de silêncio; o gesto de distender os músculos do pé. 
Então, todas essas insignificâncias, que foram ínfimas parcelas de um homem, perdem-se no universo e o vício da recriação do quotidiano é substituído por uma nova forma de culpa. 
Como os deuses e os crepúsculos, também tu te desvaneces por falta de quem te sonhe. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Ah, a poesia

na noite mais curta
lavo os pés
e adormeço vestido 

Matsuo Bashô, in O eremita viajante (haikus – obra completa), Assírio & Alvim

Dizia Borges que alguém (não importa quem) dizia que não era possível imaginar o universo sem um certo verso de Poe (não importa qual). 
Eu posso imaginar o universo sem Poe. Mas já não posso concebê-lo sem este haiku de Bashô. 
Ninguém nos explica a razão pela qual um verso pode espantar-nos como uma faca afiada no meio das omoplatas. 

sábado, 3 de dezembro de 2016

Alvíssaras

Perdi o olhar num dos espelhos das casas por onde passei. Sabemos que assim é quando, numa inútil tarde de chuva, distraídos e ao telefone, procuramos num dos cantos da boca a causa de uma irritação qualquer e, nesse estado de irreflexão, o espelho devolve-nos um olhar falsificado.
Perdi-o e só agora constatei a ausência. 
Talvez o tenha perdido no espelho do hall de entrada da que foi a minha primeira casa minha, na mais bonita rua de Lisboa, e onde o espaço era demasiado exíguo para arrumar tanta solidão.
Mas também posso tê-lo deixado, na urgência da saída, no espelho da sala de um antigo solar, entre as porcelanas e os castiçais de prata, vigiados por um morto que nos censurava do alto da parede onde o penduraram. Era uma casa rodeada de nevoeiro, perdida no meio do oceano, com vista para um prado interminável onde as vacas iam dormir.
É ainda possível, embora improvável, tê-lo esquecido no meio da planície alentejana, na casa que ficava em frente à praça onde os velhos gastavam a reforma na batota e que tinha um terraço onde, deitada, vi chegar e, depois, partir, a lenta primavera. 
Ou posso tê-lo perdido naquela casa, quase dentro do mar, onde o vento, à noite, me trazia a fúria das ondas de encontro às rochas, e eu aprendi a escutar-me na sinfonia do caos.
E pode ter-me sido roubado na saída de uma outra casa onde, junto ao meu próprio retrato pintado a acrílico, despojei a minha alma. É uma casa que fechei nas catacumbas do esquecimento e que jaz na imobilidade do gigantesco lençol branco com que escolhi cobrir a realidade. 
Sei, porém, que ainda o tinha à saída dessa outra última primeira casa, de paredes com palmeiras lilases ou rosas verdes pintadas, onde os verve tocavam de manhã à noite, aprendi a poesia, demos nomes aos objetos e foi sempre verão. Lembro-me de o ter visto no espelho do sr. Otis, o elevador, quando carreguei comigo o último dos caixotes.

Irremediavelmente, perdi-o na vasta geografia de um exílio tão longo que se fez pátria. 

Os fantasmas

Os fantasmas até podem aparecer-nos, mas não nos deixam alcançá-los.
Podemos escutar-lhes o silêncio debaixo da voz arrastada. Inventar uma intenção verbal que não se concretiza. Vê-los deslizar rente às paredes ou observá-los enquanto nos acenam um adeus enjoado à porta de nossa casa.
Mas os fantasmas nunca nos perguntarão como estamos. E, se acaso tentarmos abraçar algum, acabará por nos trespassar antes que lhe sintamos o peso. Chamam-lhes aparições porque só aparecem. Nunca estão. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Adágio

Existe que uma relação de proporcionalidade direta entre a autoperceção da intensidade do amor e o tamanho do erro a que o amor serve de pretexto. 

sábado, 26 de novembro de 2016

Tempestade



Logo a seguir ao almoço, caiu, profunda, densa, inclemente, a intempestiva noite. As árvores dobraram-se; os raios cruzaram o céu e desfizeram-se no mar; o vento atirou pedras às minhas janelas; a tempestade expulsou os homens e fez suas as gaivotas e as ruas. 
Aqui dentro, à temperatura de uma falsa tarde de setembro, kétil Bjornstad tocava o seu piano, a sala cheirava a baunilha e a chocolate, Rushdie contava-me estórias de princesas e feiticeiras e, por um ou dois minutos, tu nunca exististe.
Então, durante o dilúvio, recordei a paz.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O estranho caso de Tagik, o berbere contador de estórias

Reunimos entre nós as moedas disponíveis e entrámos na tenda de Tagik, o berbere. O muezzin tinha chamado os homens para a oração há menos de dez minutos e Tagik, debruçado sobre o seu tapete, na imobilidade milenar de mil e um homens antes de si, permaneceu alheado da nossa presença. Por fim, levantou-se, ainda em silêncio, com um longo gesto, convidou-nos a sentar nas almofadas de veludo espalhadas pelo chão e distribuiu-nos os copos da chá. Tagik não falou até que na tenda se ouvisse o tilintar das nossas moedas de encontro ao pires de prata, pousado junto aos seus pés. Então, mostrou-nos um sorriso de um resto de dentes, ordenou-nos que nos descalçássemos e, com lentidão, foi abrindo a caixa de estórias que mil e um homens  antes de si lhe haviam confiado. 
Naquela ilha, disse Tagik, mas Alá sabe mais, havia um rei que reinava sem nunca ter visto o mundo. Seguro das maravilhas do seu reino - que era belo e próspero e onde não faltavam as montanhas, os vales e as praias e onde os homens eram fortes e corajosos e as mulheres bonitas e espirituosas - recebia os mercadores e diplomatas e ouvia com expressão indiferente os longos relatos de outras ilhas e continentes. Então, quando os mercadores lhe descreviam a linha do curso do Amazonas, perguntava se esse rio não era feito da mesma água em que se mergulhava nos rios da sua ilha. E quando os diplomatas descreviam o deserto do sahara, perguntava se não o faziam os mesmos grãos de areia de cada uma das suas praias. E quando os viajantes ou os diplomatas lhe descreviam pedras preciosas, perguntava se era superior a perfeição da coroa que adornava a bela cabeça da sua rainha. E a tudo, em boa verdade, lhe respondiam que sim. E então o rei decidia que nada nas outras ilhas e continentes, reinos, repúblicas, principados, emirados e protetorados, justificava a real travessia do oceano. 
Até que uma manhã, um diplomata enviado de um pequeno país do continente, depois de admitido à presença do rei que reinava sem nunca ter visto o mundo, falou longamente sobre uma classe de homens que existia no seu país e que eram os contadores de estórias. Soube então este rei racional, governante de um reino racional, que, no mundo, existiam homens que se dedicavam ao estranho ofício de inventar descrições de factos não ocorridos a fim de assim entreter o ócio de outros homens.
O rei, disse Tagik enquanto fumava o seu cachimbo de água, que nunca tinha ouvido falar dessa insólita criação dos homens, o conto, depressa se levantou de seu trono e, disfarçando-se de mercador - velho hábito de todos os regentes das estórias das mil e uma noites e que agora não é oportuno contrariar - nessa mesma noite despediu-se da sua rainha e fez-se ao mar, a caminho do mundo. 
Quando amanheceu... 

Epílogo do primeiro fascículo, por Pipoco Mais Salgado

..já a rainha dormia nos braços do diplomata que vinha do pais dos contadores de histórias, rindo-se da artimanha com que tinham enganado o rei, fazendo contas de cabeça a quantos dias demoraria o rei a chegar ao tal país e quantos dias demoraria o rei a perceber que os contadores de histórias não existem. Entretanto, Jabalamar, o escudeiro do rei, sábio intérprete de patranhas bem urdidas...

Segundo fascículo, por Palmier Encoberto 

Terceiro fascículo, por Impontual

O Estranho caso de Tagik, o berbere contador de estórias: digressão por uma biblioteca, por Xilre

Quinto fascículo, por Luísa 

O estranho caso de Tagik, o berbere contador de estórias: A rainha Alyyah, por Maria Eu

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Mentiras da vida

Os seres humanos não conseguiriam sobreviver sem aquilo a que Ibsen chamou "mentiras da vida". O pensamento limitado a proposições lógicas, cuja expressão mais bem conseguida é não verbal, ou a factualidades demonstráveis – significaria a loucura. A criatividade humana, a capacidade vivificante de negar os ditames do orgânico a fim de dizer "não" até mesmo à própria morte, depende inteiramente do pensamento, da imaginação contrafactual. Inventamos modos alternativos de ser, outros mundos – utópicos ou infernais. Reinventamos o passado e" sonhamos o futuro". Mas, por muito indispensáveis, magnificamente dinâmicas que estas experiências do pensamento sejam, elas não deixam de constituir ficções. 

George Steiner, Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento, Relógio D'Agua

domingo, 20 de novembro de 2016

Até ao derradeiro segundo de vida

Havia um jardim de laranjeiras, morada permanente da primavera, estendido no cume de uma montanha, com vista para o deserto, a nascente, e para o mar, a poente. Foi lá que balouçámos as tardes até ao derradeiro segundo de vida do sol. 
Depois veio a noite e a sombra alta das árvores aprisionou-me os dias. 
Paguei a minha liberdade com o que de mais valioso trazia comigo: três versos de Herberto. 
Esses, que o vento haveria de semear pelo mundo existem, agora, na boca das crianças; na cauda das nuvens; no asfalto das pontes; na página impressa; na íris dos amantes. 
Esses, que me agrilhoam o pé à sombra de um jardim de laranjeiras.



XLV

Os outros dois, ar leve e puro fogo,
estão comigo onde me encontro aqui:
um pensamento, outro desejo, em jogo
presente-ausente trocam-se entre si.
Tão ágeis elementos são depois
embaixada de amor, a que te envia
minha vida de quatro, só com dois,
e cai na morte, de melancolia,
até ter nova cura de azougados
mensageiros que voltam inda agora
e regressam de ti assegurados
de que estás bem e o dizem sem demora
     Dito isto, rejubilo, e sem mais ter
     mando-os embora e volto a entristecer.

Shakespeare, in Os Sonetos de Shakespeare, tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal

sábado, 19 de novembro de 2016

Diário de Bordo

Regressei ao Aleph com a nostalgia melada de quem retorna a um lar. Na minha ausência, como sempre acontece quando se deixa o destino de um bando fora da lei entregue ao desnorte da anarquia, tudo correu maravilhosamente. A intrépida tripulação, para manter a boa energia criminosa, entreteve-se a assaltar turistas de navios de cruzeiro. Temos as arcas cheias de jóias, visons naftalinosos e cupons de bebidas pré pagas que, querendo, podemos trocar aos balcões do sea cruise não sei das quantas desde que o ataquemos antes do final do prazo de validade.
Andhrinimir, o cozinheiro pirata, foi o único que não pareceu feliz com o meu regresso. Limitou-se a grunhir ditongos incompreensíveis quando, esta manhã, me serviu umas panquecas mais horríveis do que a minha memória pode reter. Gualtiero, o Italiano e os ex-presidiários pareceram-me razoavelmente contentes com o final das minhas férias. Disseram-me que se demorasse mais tempo encontraria o navio redecorado com purpurinas e confetis. Aos bloggers e aos poetas ainda não os vi. É sábado. Não há poetas nem bloggers antes do meio da tarde de domingo. Vem nos livros.
Passei o dia no convés, sentada na minha velha cadeira de pensar, com os pés debaixo do meu cão e o pulso assente na lombada de um qualquer tomo de Borges. 
Pensei em muitas coisas: na camisola de caxemira branca que preciso de comprar online; nesse facto objetivo que consiste em ter deixado de me cruzar com borboletas; no insondável desígnio que faz com que os humanos insistam em amar-se uns aos outros; no não menos insondável desígnio que é o correspetivo do amor; numa pauta de música que ainda não consegui decorar; na longevidade das baleias; numa receita de muffins; no livro de Steiner que lerei; num poema que talvez traduza; no destino de um garoto que vi num documentário feito para nos deixar a pensar no destino das pessoas documentadas; numa ruga nova que veio habitar a minha testa; em Jack Sparow, a tornar-se um minúsculo pontinho no horizonte, na despedida de Tortuga. 

A vida pode ser coisa boa.








sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Kamikaze

Éramos os únicos clientes na esplanada de um restaurante que esteve na moda há trinta anos atrás. Diante do prato vazio, ele falou de amor e eu segui o voo próximo de uma mosca azul de olhos terríveis. A mosca desenhou um oito, exibiu-se diante da porta de vidro do restaurante e acabou por vir pousar na nossa mesa, entre o talher e uma taça com azeitonas, a escassos centímetros da mão dele. Continuei a ouvi-lo falar, incapaz de abandonar os movimentos da mosca de olhos terríveis. 
Pensei que deve ser necessária muita coragem para ensaiar voos rasantes a um inimigo tão maior. 
A troco do quê? – perguntei-me. 
Não lhe disse que o amor é moeda com as mais diversas taxas de câmbio. 


Meritocracia

Aprender piano sem talento tem uma incontornável beleza moral: Tudo aquilo que se consegue é inequívoco fruto do nosso esforço. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Mensagens do Aquém

Aparentemente, a pessoa que fui sentiu a necessidade de deixar escrito à pessoa que sou, num livro ao qual sabia que voltaria, o seguinte recado:

Preservar a frágil fórmula química do cérebro. 

Mais de oito anos volvidos, constato ser a única instrução relevante que pretendo dar à pessoa que serei.
Decidi rescrevê-lo num dicionário de mitologia grega. Não quero correr o risco de passar outros oito anos sem receber ordens minhas. 


Definição de um estado de espírito

– Não penso na minha alma – diria ele – nem na carne. Não me ponho a perguntar se ganharei a salvação. Eu preciso de amor. Preciso aprender. Mas parece que na comunidade já tudo se aprendera, estava tudo ensinado e sabido desde sempre. E os homens pensavam apenas em preservar-se do sofrimento; desejavam que a linguagem ficasse intacta, sem mácula.

Herberto Helder, Os Passos em Volta, Porto Editora.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Até onde a vista alcança

Embalou-me a cega ida, em permanência, a mesma música. O coração sincronizado com as ondas do mar bombeou, ad nauseum, a insistente memória de uma expressão no olhar. É dessas insignificâncias, ridículos pequenos nadas, que são feitos os sentimentos que nos hospedam.
No regresso, trouxe-me o silêncio. Vi cada metro da longa estrada, todas as árvores, vários rios e o início de um deserto. Esse que nasceu no espaço vazio de uma antiga expressão no olhar. O que mesmo que hoje se estende até onde a vista alcança. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Acusações





Ergueu-se enorme, vermelha de raiva, uma lua acusadora.
Encheu-se das promessas que incumprimos; inchou na solidão dos encontros a que faltámos.
Sobre esta minha praia e sobre aquela tua baía, ergueu-se, acusadora, a lua que traímos. 
Impõe-se, agora, alta e plena, ao negro profundo que é o espelho vazio do nosso desamor. 
Pendurada num resto de céu, denuncia ao mundo o nosso crime. 
E escurece-nos. 
A lua sempre enche de negro aqueles a quem, por mil e uma noites, iluminou. 


domingo, 13 de novembro de 2016

Haiku#2

(Amanhecer)


Desce da lua
uma gaivota azul
que tinge o céu

Irrazão

«A irrazão derrota-se a si mesmo», disse Ibn Rushd a Ghazali, pó ao pó, «devido à sua irrazoabilidade. A razão pode fazer uma soneca por algum tempo, mas o irracional está na maior parte das vezes em coma. No final, será o irracional a ficar para sempre enjaulado em sonhos, enquanto a razão vencerá.»
«O mundo com que os homens sonham», respondeu Ghazali, «é o mundo que tentam fazer.»

Salman Rushdie, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, D. Quixote, pg. 158, 159.

Uma destas manhãs

O Moby cantava na sala One of These Mornings. O cão pousou o cabeça nos meus joelhos. Um qualquer Tagik, o berbere contador de histórias, esperava dentro do livro aberto. O vizinho de baixo assava peixe na varanda. Uma nuvem tapou momentaneamente o sol. O telefone imitou o som de um sino. O cão levantou a cabeça dos meus joelhos. Eu já me tinha ido embora. 


Haiku#1

Nenhuma onda
trouxe para lá da praia
marca dos teus pés

Haiku

Apaixonado
O gato esquece o arroz
colado aos bigodes 


Tan Taigi (1709-1771)
(Roubado da net, de um site cujo endereço não guardei)

sábado, 12 de novembro de 2016

Salman Rushdie e Trump

Fui há tempos a uma dessas livrarias conhecidas tentar comprar o último livro de Salman Rushdie. Não me lembrava do nome do livro e a menina que estava ao balcão nunca tinha ouvido falar de Salman Rushdie (mesmo depois de lhe soletrar o nome). Perguntou-me por um outro título que tivesse escrito e eu respondi-lhe com o óbvio Versículos Satânicos. A menina disse-me, notoriamente incomodada, que ali não vendiam livros "desses". Desproporcionadamente irritada, dirigi-me à mesa, a dez metros de distância, onde estavam expostos uns bons quilos de um livro infantil escrito pelo autor e entreguei-lhe um exemplar explicando-lhe que aquele era o autor de quem ela nunca tinha ouvido falar. Perguntou-me, então, sobre o que é que ele escrevia mas, infelizmente, não consegui encontrar resposta adequada a tão bizarra pergunta vinda de alguém que trabalha numa conceituada livraria. Isto passou-se em Lisboa, na semana anterior à anunciada chegada de Rushdie a Portugal.
Dois Anos, Oito meses e Vinte e Oito Noites, o livro em questão, e que agora tenho no colo, desconfio, foi escrito a pensar na menina que estava ao balcão da livraria. Rushdie podia ter contado esta boa estória da mesma forma genial que contou a história de Os Filhos da Meia Noite ou dos Versículos Satânicos. Mas, em vez disso, decidiu voluntariamente surfar esse tsunami da democratização da cultura e escrever um livro muito explicadinho que qualquer pessoa que saiba juntar letras pode compreender. Segundo li numa entrevista dada ao público, terá ficado muito satisfeito por a crítica ter dito que o livro é engraçado. Vivemos, pois, num mundo  em que os génios da literatura querem escrever coisas engraçadas que possam ser do agrado da classe de pessoas que nunca ouviram falar de Rushdie. E, assim de repente, com este livro no colo, que podia ser genial mas é um livro engraçado, fiquei aqui a pensar para mim que este tipo de democratização - que é o mesmo que permitiu a Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos da América - é resultado, contrariamente ao que se diz por aí, não de as elites não ouvirem o povo, mas antes de quererem fingir que o povo está certo e de o seguirem em vez de o dirigirem.

Nocturne op. 9/2

E enquanto luto com o piano ocorre-me que a humanidade, que controla a energia, as horas, a temperatura da terra, os efeitos das marés, os vírus, o desenvolvimento das células, é composta por pessoas maioritariamente incapazes de controlarem os seus próprios dedos das mãos. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Tratado de Tortuga

Estávamos sentados, lado a lado, à mesa de um restaurante de Tortuga e lá fora caíam as primeiras chuvas quentes de novembro. Vi passar um casal que, pelas ruas desertas, caminhava de mãos dadas, encharcado até aos ossos, na lentidão de uma hora de sol manso. 
Entre as entradas e o prato principal ele revelou-me os seus projetos de enriquecimento meteórico. Era um bom plano e um bom enriquecimento e se havia no mundo pessoa capaz de o levar a cabo era ele. 
Disse-me ainda que, depois de enricar, tencionava, por fim, dedicar os seus dias a amar-me. Avaliei a proposta com os olhos fixos no casal que se afastava lentamente e não me pareceu completamente descabida.
Mas quando levei o copo à boca, percebi que o vinho azedara já na mesa.
Nunca antes, com tanta alegria, me haviam declarado um amor tão condicionado. 
Num ou noutro porto, já tinha conhecido pessoas que me fizeram sentir ignorante ou mesmo estúpida. Mas foi a primeira vez que alguém me fez sentir miseravelmente pobre. 



Cohen


quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Desistência

Quando o céu se fecha e tudo se cala, por vezes, no silêncio invisível que pertence aos sonhos, a minha mente ainda segue o trilho da rebelião. É nessas alturas, entre o primeiro sono e o espaço da insónia, que te encontro. 
Estamos sempre encurralados entre a opressora montanha e o infinito mar. Próximos mas não juntos. Separados pela espessa cortina de nevoeiro. É sempre madrugada, está sempre frio, a tua boca move-se e eu não consigo compreender o que dizes. 
E, de todas as vezes, ainda antes de acordar, dou por mim, com escrúpulo milenar, a cumprir a desistência. 


quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Demoquê?

O insólito, inesperado, inexplicável empate na eleição do futuro nome deste navio, além de demonstrar que entre a maravilha e o horror não há centésima que os separe, deixa sobre os meus ombros o terrível encargo da escolha. 
Na solidão do convés (ou num restaurante em Nova Iorque) refleti muito, (ou fizeram-se estranhas coligações entre campanhas rivais) sobre a melhor forma de terminar com o impasse político que quase arrastava este navio para uma existência anónima. 
Decidi (mas também há quem jure que foi um acordo entre os proponentes dos vários nomes) que este navio Pirata, afinal, já tinha um nome à sua espera: Aleph. 

Nunca saberemos a verdade toda. E é por isso mesmo que precisamos de um Aleph, essa janela para a verdade que é a nossa. 

Obrigada pelas vossas sugestões e pela participação neste ato eleitoral marcado por aquela especial forma de lisura que é timbre da pirataria. 

Obrigada, especialmente, à Luísa (Asherah e o melhor nome a concurso), ao Onónimo Quiescente (Behemoth), ao Pipoco Mais Salgado (Conjurado), ao Manel Mau-Tempo (Driverswigger), à Mais Picante (barca do Desassossego), à Alexandra (Kraken) à Palmier Encoberto (a alucinante cimitarra de purpurinas) e ao Impontual que disse a palavra mágica que fez com que percebesse que o navio, afinal, já tinha nome. 
E claro, o meu agradecimento especial à Lady Kina, sem a qual a democracia não teria a mesma graça. 

(P.s. E o Pipoco Mais Salgado ganhou. Ele, no fundo, sempre quis que este navio se chamasse Aleph!!)





  


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Enquanto isso...


O Aleph

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do aparelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e as tardes, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão décima casa de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um circulo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvore (...) vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph de todos os pontos, vi o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

O Aleph, Jorge Luis Borges (obras completas, volume I)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Piratas do Parlamento



Aviso

Queridos (e) leitores

Considerando a elevada afluência às urnas, com consequências ao nível do esgotamento dos boletins eleitorais, por  um lado, e do aumento das baixas médicas com fundamento em tendinite, por outro, informa-se que o período de votação foi encurtado para amanhã, até às 23:59 horas. 
Entretanto, deixo-vos, especialmente aos que votaram no nome proposto pela oposição, o inspirado poema da autoria do nosso poeta

«Raciocínio lógico»

Que Desassossego esta votação,
Nem sei se hei-de votar Conjurado ou não,
Mas se até a pequena Cutxi votou,
No Asherah que ia à frente quando começou,
Agora nos post está uma discussão,
Sem se perceber onde está a razão,
Behemoth ou Driverswigger também são opções,
Mas têm poucos votos há outras soluções,
Qual Kraken mitológico,
Num raciocínio lógico,
Eis que surgem sem avisar,
Um nome sonante que está quase a ganhar,
Cimitarra de Purpurinas é o que lha chamam,
Se mudarem o voto ainda a apanham,
Este navio da Cuca já merecia um poema,
Tem muito assunto e um grande tema.

domingo, 6 de novembro de 2016

Um nome para este navio

Queridos leitores:

A incúria e a distração da autora deste blogue fizeram com que durante vários anos não se tivesse apercebido que a embarcação  que por aqui pirateia não tem nome.
Esta deplorável falha está em vias de correção e ali, do lado direito, decorre uma votação de extrema relevância que acabará com a intolerável situação de anonimato.
Seis dos sete nomes colocados a votação são o produto do esforço criativo dos leitores deste blogue. São nomes lindos, maravilhosos, que captam o espírito deste navio e não nos envergonham em nenhum congresso da especialidade.
O sétimo nome corresponde à sugestão de uma blogger, ela própria com nome de bolo, feira após ingestão de vários copos de uma bebida alcoólica não identificada porém potente.
Foi ali colocado para vos dar a oportunidade de rejeitar o mal. Estudos científicos dizem que o ser humano liberta uma hormona que o faz sentir muito bem sempre que, sendo-lhe dada a oportunidade, rejeita o mal. 
A capitã deste navio oferece-lhes o privilégio de uma trip, hormonal, gratuita e sem ressaca, ali ao vosso alcance, do lado direito. Tudo o que é preciso fazer é não votar no nome ridículo. Se não quiserem ter trabalho, votem no primeiro. Nem precisam ler tudo até ao fim. Mas se lerem até ao final, lembrem-se do estudo científico. Rejeitem o mal. Querendo, podem partilhar a sensacional experiência da trip hormonal provocada pela consciência do bem.

Antecipadamente grata. 


sábado, 5 de novembro de 2016

Entretanto, num navio pirata sem nome...






sexta-feira, 4 de novembro de 2016

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Diário de bordo

Quando os vi a todos rigorosamente vestidos, camisa com atilhos sobre o peito, chapéus, sabres, tapa-olhos e pernas de pau, comecei por pensar que, à revelia da minha expressa proibição de festejos importados de continentes bárbaros, estivessem a preparar-se para comemorar a noite das bruxas, mas em versão muito pior, como, em tudo, é timbre desta tripulação Pirata. Depois reparei nas expressões dramáticas, olhos lacrimejantes, postura nostálgico-saudosa, tudo devidamente acompanhado por lenços brancos prontos a ser esgrimidos em intermináveis acenos, e lá percebi que aquilo era uma festa de despedida.
Comuniquei-lhes que durante a minha ausência no congresso de piratas o comando do navio ficará entregue à Pequena Cutxi. Depois de uma das minhas aturadas reflexões de dez segundos, concluí que, entre todos, é o membro da tripulação que me oferece mais garantias de não conseguir provocar danos consideráveis na minha ausência. Além do mais, é tranquilizador saber que a devolução do comando do meu navio fica à distância de um triângulo de queijo ou, na pior das hipóteses, de uma bonita tiara de pechisbeque. 
Parti no final daquela noite e cheguei às Caraíbas no dia seguinte. 
O Pérola Negra não tem o conforto do nosso navio mas leva sobre ele a inegável vantagem de vir equipado com Jack Sparrow. 
Sobre o lendário pirata, bom, direi apenas que me fez lembrar uma velha amiga e a sua bizarra filosofia relativamente a homens. Dizia ela que gostava muito de namorados intelectuais mas apenas durante o inverno. De verão, a praia, o sol, o mar, as longas madrugadas, bastava-lhe que fossem muito bonitos.   
Nas Caraíbas é verão. 


terça-feira, 1 de novembro de 2016

Dia dos mortos

Conheci a tristeza desolada de algumas mortes mas o permanente desgosto de uma única. A falta é um frio que nos encarquilha os ossos por dentro. É um órgão desenhado a vácuo que se instala entre os demais e reclama o seu espaço nas entranhas. Não admira, pois, que as nossas células trabalhem ativamente na sua rejeição. 
O dia dos mortos é a terra de exílio das ausências desesperadas que o corpo já expulsou. 
Um dia também eu conseguirei, neste dia, festejar o meu morto. 

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Café Society

É o mais bonito filme de Allen.
Tudo é exatamente como tudo tem de ser.

domingo, 30 de outubro de 2016

A sexcentésima segunda noite

Como Xerazade ao rei Schahriar, também eu, na sexcentésima segunda noite, haverei de contar-te a história que já é a tua. 
Serei gentil com as tuas fraquezas. Procurarei atenuá-las com rendas e cetins. 
Indignar-te-ás com os traços de cobardia e não te reconhecerás no liso espelho. 
Então, condenar-te-ás com uma dureza mil e uma vezes superior àquela de que eu seria capaz. 
Depois adormeceremos em paz, apenas para que, no dia seguinte, te deixe viver um outro por-do-sol. 

E tu, Cuca, o que fizeste com os sessenta minutos que os burocratas te ofereceram?

Trabalhei, já que ninguém explicou ao meu cão que era para dormir mais uma hora.

sábado, 29 de outubro de 2016

Seis graus de separação

It is the worst kind of yellowness to be so scared of yourself that you put blindfolds on rather than deal with yourself. To face ourselves - that's the hard thing. 
The imagination - that's God's gift, to make the act of self-examination bearable.

Paul, in, Six degrees of separation 

Rios de tinta

Veio ver-me num final de tarde de chuva.
Estava em pé em frente às grandes janelas a ver a água escorrer pela rua quando entraram para o anunciar. 
A minha mão desenhou três frases na folha branca que dobrei em quatro e pedi que lhe entregassem. 
Voltei a ocupar o meu lugar junto às janelas e fiquei por muito tempo, às vezes penso que para sempre, a ver a água escorrer pela rua.
Não voltei a aproximar-me das janelas, sobretudo, quando chove. 
E nunca saberei qual a exata formação de letras que foi a arma do mais terrível dos meus crimes.