sexta-feira, 1 de abril de 2016

O Espelho que há em Pavese

Vens sempre do mar 
e do mar tens a voz rouca,
e sempre os olhos secretos,
de água viva entre silvas,
A fronte baixa como
um céu de nuvens baixas.
De cada vez renasces 
como uma coisa antiga 
e selvagem, que o coração 
já sabia e cala.

De cada vez é um rasgão, 
de cada vez é a morte.
Combatemo-nos sempre. 
Quem aceita o choque
tomou o gosto à morte 
e leva-o no sangue.
Como bons inimigos 
que não mais se odeiam
somos uma mesma
voz, uma mesma pena 
e vivemos ofendidos 
sob um céu miserável. 
Entre nós não há a insídia, 
não há coisas inúteis - 
combateremos sempre. 

Combateremos ainda, 
combateremos sempre.
Pois perseguimos o sono
da morte lado a lado,
e a nossa voz é rouca
a fronte baixa e selvagem 
e um céu idêntico.
Fomos feitos para isso.
Se um de nós cede ao choque,
segue uma longa noite
que não é paz nem trégua 
e não é morte verdadeira.
Tu já não existes. Os braços 
agitam-se em vão.

Até que o coração nos trema.
Disseram um dos teus nomes.
A morte recomeça.
Coisa ignota e selvagem
renasceste do mar.

Cesare Pavese, in Trabalhar Cansa 

3 comentários:

  1. Ainda não tive oportunidade de ler um livro inteiro de Pavese, apenas excerptos, não sei muito sobre ele, sei que era suicida, mas gostaria de saber se ele estava em guerra com a mulher (real ou imaginária) ou se só com ele próprio. Neste último caso, será mais grave pois sente-se, duplamente (as do 'eu' e as do 'outro') com mais violência, as palavras duras.

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    1. Nunca tinha pensado muito nisso porque deu-me mais jeito interpretar o poema como dirigindo-se a outra pessoa. Mas agora que falas nisso, penso que se está a referir a si próprio.

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    2. Ele falava muito consigo próprio, como se fosse "ele", tratando-se por tu, tal como as pessoas que não têm, por vezes, interlocutor à sua altura, ou nenhum mesmo. E com a lullaby, cheguei até aqui.
      Deveria tê-la ouvido ontem. Tinha dormido melhor. :)

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