domingo, 10 de abril de 2016

Verão indiano

Naquele início de verão partiu para a Índia com uma mochila às costas. 
Em Lisboa, cumpríamos a tradição dos verões lentos e insuportáveis. A ausência escaldava as noites espremidas num apartamento demasiado apertado e a solução vinha da frescura que o rio prometia. Foi um verão vodka limão com noites brancas antecedidas pela imobilidade das tardes nas esplanadas. O postal perdeu-se nas intrincadas linhas do destino. Enquanto nada acontecia, como sempre sucede, abria-se o espaço à vida.
Regressou já depois das primeiras folhas do outono. Trouxe na mochila os sete metros de seda que escondi na última gaveta da cómoda das dezenas de casas que desde então foram minhas. Estendeu-mo no colo, dizendo, desajeitado, que era um vestido de noiva indiano. Comprou-o no seu segundo dia na Índia, carregando-o pela monção fora,   para o fazer meu à chegada. Foi a única vez na vida que o vi comover-se.
Sessenta dias foram demasiadas noites no verão lento de Lisboa. Recebi-o numa casa encaixotada na direção de um outro futuro. O nome e o endereço do destinatário estavam escritos por todas as ruas de Lisboa. 
Nunca chegou a ver-me vestida com o sari. Usei-o uma única vez. Anos depois, à distância de dois aviões, na noite fria que se seguiu ao dia em que foi sepultado.
Hoje vi um sari num estendal, a lutar contra o vento, e lembrei-me desse longínquo verão indiano em que os astros decidiram escrever um conto pulp fiction. 

4 comentários:

  1. "O que dói
    É não poder apagar a tua ausência
    e repetir dia após dia os mesmos gestos

    O que dói
    é o teu nome que ficou como mendigo
    Descoberto em cada esquina dos meus versos

    O que dói
    é tudo e mais aquilo que desteço
    Ao tecer para ti novos regressos"

    Daniel Faria/Ítaca

    (Aqui para nós, eu sempre me quis casar de sari
    não de sari/lhos)

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    1. O que dói são as infinitas possibilidades das coisas que poderiam ter sido.
      Não conhecia o poema mas a escolha do poeta adequa-se demasiado bem ao post.

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  2. (é possível que este comentário, que deveria estar escrito em letras pequeninas para não perturbar, tenha o efeito de um abraço apertado?)

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