quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Desconstrução da felicidade

A melhor desconstrução do mito da felicidade, encontrei-a em Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis, a propósito da sua imaginada cidade de Zenóbia, mas, sobretudo, válida para os seres humanos: "Dito isto, não vale a pena determinar se de deve classificar Zenóbia entre as cidades felizes ou entre as infelizes. Não é nestas duas espécies que faz sentido dividir a cidade, mas noutras duas: as que continuam através dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos ou conseguem aniquilar a cidade  ou são eles aniquilados."
É substituir cidade por pessoa. 

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Esmola

Como o mendigo cego de Borges, antes de partir e levar na palma da mão as minhas últimas pedras, sem que também eu lhe tenha ouvido os passos ou me haja voltado para o ver perder-se ao alvorecer,  igualmente poderia ele ter dito:

– "Não sei qual é a tua esmola, mas a minha é espantosa. Ficas com os dias e as noites, com o siso, com os hábitos, com o mundo."

O preço, sei-o agora, foi bagatelar. 


Dia de citar Borges

P.S. 1924 – Já sou um homem entre os homens. Na vigília sou o emérito Hermann Soergel, que mexo num ficheiro e que redijo trivialidades eruditas, mas ao amanhecer sei, por vezes, que o que sonha é o outro. De tarde em tarde surpreendem-me pequenas e fugazes memórias, que porventura são autênticas. 

Jorge Luis Borges, A Memória de Shakespeare e Nove Ensaios Dantescos, Quetzal

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Autorizada memória

São fragmentos indistintos que nem sequer a ordem que pertence ao tempo sabem respeitar: 
os primeiros sapatos, vermelhos, com franjas caídas sobre os tornozelos escanzelados; um balão que se desenrolou do pulso, perdendo-se para sempre no azul do céu de agosto; um edifício em ruínas sobre o mar por cujas janelas sem vidros entraram as silvas, a manhã e o amor; o jardim de laranjeiras onde uma inusitada cama de rede ainda balouça ao ritmo do vento norte; o sol a apagar-se no pó da interminável pista de um aeroporto esquecido; as fotografias antigas nas paredes de um quarto que cheirava a restos de praia; uma goma em forma de ovo estrelado sobre a almofada de um hotel madrileno e o chapéu alto do seu porteiro; o corredor estreito de um outro hotel que a ânsia de um abraço tornou interminável; o rasto de sangue que ficou na palma da mão aberta; as cortinas com desenhos de laranjas, pêras e bananas penduradas na janela de uma cozinha; a expressão da morte nos olhos de um homem exposta na capa de uma revista antiga; o único juramento sentido; o teor de uma mensagem escrita que não me era dirigida; a sombra das omoplatas na penumbra de uma sesta tropical; quatro versos de Borges; o assombro do amanhecer veneziano numa praça vazia; a lua cheia sobre as vinhas e o seu mesmo reflexo nas águas do mar; um copo de vodka numa tarde de início de novembro nos anos noventa; dois faróis separados por vinte anos e pela inocência; o meu primeiro Nabokov; a sensação deixada pelo pesadelo recorrente de um cão cego a atravessar uma rua de moradias baixas; o sorriso triste de acrílico que pintaram no meu retrato e o sofá onde se formou; os caixotes espalhados no chão de uma sala que nunca fiz minha; uma noite de febre nuns lençóis amarelos e a varanda com vista para Monsanto; o frio do deserto que se encapsulou na medula e se tornou permanente; a primeira letra do meu nome bordada num bibe de riscas verticais; a carta que destruí antes de ler e aquela outra que não deveria ter escrito; a terceira bandeira de uma praia de nevoeiro; o som do último bater da porta que sabia bater pela última vez; o cais das colunas numa madrugada de chuva; o anel que perdi propositadamente; esse abraço indesculpado que só eu sabia não ser o último; os nomes que demos aos objetos de uma casa com rosas gravadas nas paredes; a sonoridade do meu nome em sotaques diferentes; a memória da marca eterna de uma clavícula partida; o instante em que fui atingida pela evidência da minha própria falibilidade; os poemas inéditos de um poeta morto que rasguei num dia de raiva; aquelas duas horas em que conheci os cambiantes do medo; os pés do Eros de Caravaggio num museu de Berlim e dois outros pares de pés em duas outras ignotas partes do mundo; Adagio for Strings, de Bernstein e o Clair de Lune de Debussy; o sabor a romã na boca de um homem; o mergulho no mar de esta manhã.
E a tão pouco se pode resumir a autorizada memória de uma existência. 


domingo, 28 de agosto de 2016

sábado, 27 de agosto de 2016

prazo de validade

Foram tantos os regressos e tantas as partidas que a bagagem minimizou-se ao que coubesse em duas mãos cheias. Agora estás na minha frente e tudo o que consigo pensar é como foi possivel esquecer-me que és tão alto. Espreitamo-nos no fundo dos olhos mas só vislumbramos o que já trazíamos dentro de nós. Entretanto, correu um rio inteiro e as margens alargaram-se ao limite do intangível. Ouço-te falar sobre o tom do meu cabelo com o olhar de quem conta estórias sobre reinos longínquos de gigantes e unicórnios alados. Comovo-me com o equívoco. Estendo um braço mas não toco coisa alguma. Não te digo que já não existimos. O regresso é breve, a partida longa e um dia acabaremos por morrer.
Até a verdade tem um prazo de validade.

Funambulismo

Dentro de uma dessas caixas de papelão seladas por fita de seda cor-de-rosa está enrolada e arrumada a velha corda de funambulista por onde correram os meus pés descalços nas viagens entre os terraços dos arranha-céus da cidade.
O tempo limou dos pés as marcas desse vício mais antigo do que eu e o rasto que agora se cola à areia mostra um negativo igual ao de todos os outros. 
Não foi por medo de morrer que desisti de unir o cimo da cidade com as minhas cordas e fazer delas o caminho das estrelas. 
Foi por ter engolido a vertigem. 


sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Diário de Bordo

Quando a minha tripulação vê o mês de agosto formar-se no horizonte, deixa de ser intrépida e valorosa e entrega-se à compulsão nacional burguesa que consiste num irresistível impulso para se enfiarem todos dentro de uma marina algarvia.
Foi assim que há cerca de 15 dias, rumando eu na direção da Noruega,  reparei que sempre que me afastava do leme, o navio, como se com foros de vontade sua, assumia imediatamente a rota algarvia. 
Uma noite, o Garcia Márquez e o seu livro de contos aliaram-se a esta tripulação viciada e viciosa, fazendo com que me distraísse no convés por largas horas. 
Adormeci com os pés civilizadamente frios, enrolados numa manta de arminho, e tive um pesadelo com mares sem cheiro.
Acordei afogada num charco de calor africano; mordeduras de melgas entre os dedos; pregões de bolinhas com e sem creme; a costa do Algarve, que estaria à vista, se não estivesse coberta por gente estendida nos areais... 
A minha tripulação, é claro, já se havia disperso por creparias, italianos, lojas de quinquilharia recordacional, saltitando feliz e veraneante entre as ondas e os pés do vizinho. 




segunda-feira, 8 de agosto de 2016

E quando a terra completa outra volta ao sol...



Compra-se a ficha para mais uma viagem no carrossel. 

domingo, 7 de agosto de 2016

Éramos felizes e não sabíamos

Acordar com os gritos de Adhriminir, o cozinheiro pirata, a tentar apanhar o papagaio Polly para podermos ter carne ao almoço. Subir ao convés e tomar um brunch de panquecas de alga e ovos de gaivota. Escolher todos os dias uma peça de design nova para vender no OLX e garantir orçamento para livros. Usar tapa-olhos e chapéus comprados nos saldos de carnaval das lojas de chineses. Sentarmo-nos todos em frente ao espaço vazio onde antes foi a mesa de reuniões para planearmos um golpe exequível sem as armas que a nossa pobreza já não podia pagar. Assaltarmos botes de turistas pé descalço e no final do dia lutarmos uns contra os outros pelos três euros do saque. O cheiro da sopa de búzio e o sabor dos restos de rum diluídos em água do mar. 
Ah, a nostalgia dos dias em que ainda não não tínhamos aprendido a assaltar petroleiros...

sábado, 6 de agosto de 2016

Houve aquela tarde

Nunca consegui ensiná-lo a ver, não para além, mas através do aparato. 
Sentados no chão de terra batida, joelhos nus, mãos sujas, olhos límpidos, o sol a esvair-se para lá da montanha, eu a afiançar que podia ser apenas aquilo e ele ensurdecido pelo inoportuno tilintar das minhas pulseiras. 
Demorei muito tempo a perceber quão escura e densa é a cortina do aparato. Depois aprendi a amá-la. Daquela maneira como se ama a pequena cicatriz que se trouxe de lembrança de uma guerra que não foi ganha nem perdida.