terça-feira, 27 de setembro de 2016

Emergência da verdade

Com a canícula ainda agarrada à carne 
e a emergência da verdade nos restos do sonho da sesta 
declaro-te que não sei do que falas quando dizes amor. 

Há também aquele anjo de louça, 
ajoelhado em inútil oração, 
de castigo de encontro à porta da vizinha inglesa, 
e lamento-o, quando por ele passo, depois do cansaço do dia,

Mas não lhe digo que o amo. 

Ou a papoila selvagem que insiste em nascer de um resto de terra, 
entre a calçada e o canteiro, 
e é o meu pequeno milagre do fim do inverno, 
que nunca sobreviverá à primeira lua do verão. 

Mas também a ela não juro amor. 

Há o gato que coabita o meu telhado e,
no sol frio da manhã,
estende a pata ferida para verificar a eficácia das garras contidas. 

Não seria capaz de amá-lo.

Nem sequer ao louco que desfila na rua
e engole com os olhos dementes
 os meus mais tristes segredos,
para os guardar dentro da bizarra cartola
que nunca  o vi estender 
na direção dos outros transeuntes.

E este ser 
que é soma do anjo de louça, 
da papoila intermitente, 
do gato ferido e do louco vadio, 
declara não supor, 
sequer, 
do que falas, 
quanto dizes amor. 





segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Música dos deuses


Antes de os deuses enlouquecerem

Houve um jardim com rosas suspenso no cume de uma montanha.
O sol mergulhava à hora certa na sétima onda da praia esquecida
E podia-se vê-lo cruzar-se com uma lua que era sempre azul,
Ambos no passo lento das valsas mornas, 
que é o abraço ligeiro dos amantes 
mais antigos
do que o mundo.

Uma manhã os deuses enlouqueceram de ciúme pelo amor dos homens.
Os olhares que deceparam a última das rosas, atearam o fogo à montanha 
E restou a cortina de fumo, que engoliu o sol e regurgitou uma lua cinzenta.
Estendendo a cegueira aos corpos desencontrados,
que são o alheamento profundo dos amantes
mais antigos 
do que o mundo. 

Os que ainda trazem entre os dentes os restos de uma rosa,
mas já esqueceram o contorno da mão que a plantou.






domingo, 25 de setembro de 2016

Essa outra Pirata

A mim não me puxa a compaixão, estou do lado deles, homens ruins de gengivas rotas, sou eu a mulher que têm durante as travessias, mulher incompleta e de pau, a quem entregam todos os terrores,
todos os clamores,
a quem acendem velas e renovam promessas. Sou eu que sei dos seus últimos cuidados, quando perdem um pé neste mundo e entram com o segundo no outro. Homens rudes, que arregaçam as mangas e mostram as cicatrizes, as tatuagens, corpos martirizados, tornam-se outra vez tenros, iniciais, limpos e pequeninos e chamam pela mãe. Ninguém, só eu, os consegue ouvir na transição. 

Ana Margarida de Carvalho, in, Não se pode morar nos olhos de um gato, Teorema

Lago Tanganica - o verdadeiro comunicado

A intrépida tripulação que compõe este navio, zarpou ontem dos mares profundos onde se encontrava, rumando aos bancos de areia do Lago Tanganica, numa inédita operação de resgate dos três habitantes que desapareceram após o anúncio de uma cimeira secreta com vista à resolução do problema criado por aquilo do concurso do melhor blog do ano e, mais especificamente, pelo facto de nenhum dos habitantes do Lago ter sido nomeado.
Chegados ao Lago, embarcámos nos nossos botes insufláveis, aqueles que sobraram dos saldos de verão da loja dos chineses, e seguimos o rasto dos desaparecidos. Pese embora a natural tendência para transformar qualquer ninharia em epopéia, devo aqui admitir que a empresa não foi difícil. Bastou-nos seguir o fumo dos cohibas. 
Fomos dar com os cimeirados, num dos bancos de areia, atrás de uns arbustos, rodeados pelos restos de um festim de Barca Velha, paté de flamingo, estranhos casacos de griffe e dossiers secretos do conselho de ministros. Estavam os três semi inconscientes e num estado absolutamente deplorável, mesmo para os liberais critérios de uma tripulação pirata praticante do relativismo ético.
Recolhidos os organizadores da cimeira, os nossos propósitos humanitários de libertação e salvamento, como, aliás, já é timbre desta tripulação, foram objeto de um ligeiríssimo desvio. 
Vamos manter a Palmier, o Pipoco Mais Salgado e o Senhor Ministro entre nós até que nos rendam a fortuna ou, pelo menos, a glória de uma vitória no dito concurso, para o qual nos autonomeámos, corrigindo assim uma grave injustiça do sistema capitalista que a todos oprime e nem a pirataria deixa incólume.
Ou, pelo menos, até que acordem. 
Tenham medo. 


sábado, 24 de setembro de 2016

Miragem



"O conceito corrige os olhos."

Ortega y Gasset, in A Rebelião das Massas

Tangos


Cuidados continuados

Nós, os de doença de alma crónica, sabemos como é aborrecida a permanente vigilância, o cuidado na recolha da temperatura, o critério na escolha do agasalho certo, a medição programada do tamanho da sombra, a análise química dos poluentes em redor. Às vezes, as pessoas saudáveis dizem-nos que devemos tirar a máscara, molhar os pés nas poças de lama, apanhar a chuva da manhã, correr pelas florestas, fazer amizade com os micróbios. 
Às vezes parece-nos tão verdade que rasgamos as paredes da redoma. 
Mas cedo regressamos ao castigo do quarto asséptico, incapazes de respirar; com os músculos demasiado doridos para nos susterem o esqueleto e os sonhos poluídos pelos germes que trouxemos debaixo das unhas. 

Sombras Chinesas



Levei a Anatomia da Melancolia, de Burton, mas confiscaram-mo juntamente com todas as outras iCoisas. 
Abandonaram-me, durante mais de meia hora, deitada numa cama, num espaço exíguo e quente. Ocupei o improgramado tempo de não existência a projetar sombras chinesas na parede. Quando finalmente se lembraram de mim e me perguntaram se estava pronta, respondi que não, que faltava libertar a princesa. 
Olharam para mim como se estivesse louca.
As pessoas tendem a menosprezar a necessidade de encerrar todas e cada uma das estórias. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Dentro da caverna de Platão

Passámos tanto tempo com as sombras como horizonte que esquecemos que a vida concretiza-se no relevo e no peso. Saberia reconhecer o anti-reflexo do ser em três dimensões distintas. Mas foi o simples toque de uma mão que me encheu de espanto. Um espanto animal. De carne. De coisa viva. E a imensidão das sombras, por um instante, diluiu-se nas veias. 

domingo, 18 de setembro de 2016

À mercê da lua

À grande lua pesaram-lhe todas as histórias de amor do universo. Soltou-se do céu. Encontrei-a caída logo a seguir à primeira curva da auto-estrada. Enorme, de um ouro antigo e muito cansada. 
Lembrei-me do poema que diz que a lua é o teu espelho. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

As lições de vida do facebook

Não basta anular as imagens. 
Se não apagares o facto que documentam, este permanecerá na memória do sistema. Então, será uma memória tão indistintamente partilhável como qualquer outra. E o sistema perguntar-te-á, num qualquer dia de menor atividade, se queres partilhar com mundo a memória do facto, agora devidamente acompanhada pelo quadrado em branco que é o correspetivo da imagem representativa que substitui a que apagaste.
A única coisa que, afinal, conseguiste destruir. 
Nessa altura, poderás ver um bonito coração vermelho; um verso do teu poeta preferido ou, pior ainda, uma frase que não seja falsa, fazer-se acompanhar pelo mais absurdo vazio. 
Se tiveres sorte, essa memória amputada de objeto parecer-te-á uma composição preferível à original. 

Atrofia


Boletim meteorológico

Amanheceu o cheiro da chuva hoje, pela primeira vez em demasiado tempo. 
A pele já havia esquecido como são frias as gotas da chuva quando nos caem entre o pescoço e as omoplatas e deslizam livres pelas costas. É a chuva boa.
A alma, percebi-o, não esqueceu o dia em que a chuva veio e na sua violência afogou as rosas, levou os caminhos, impôs o silêncio ao mar. É a chuva má. 

*E a alma dirigiu-se para o corpo que a feriu de amor*

Methinks I have a mistress yet to come,
And still I seek, I love, I know not whom.

Isto é verdade, sem dúvida, em relação ao amor casto e não natural, mas não em relação à paixão heróica, que é verdadeiramente luxúria ardente e animal, e da qual estamos a tratar. Falamos de olhos delirantes, lascivos, adúlteros, que, segundo diz o autor, "estão sempre à espreita como soldados e, quando notam que um inocente espectador se fixou neles, trespassaram-no com as suas flechas e, nesse preciso instante, enfeitiçam-no. Isto acontece, sobretudo, quando fixam os olhares entre si, como amantes impúdicos que, com essa comprazida disputa de olhos, participam mutuamente das suas almas". Do que foi dito podereis aperceber-vos de como é fácil, e rápido, apaixonar-nos, pois basta uma piscadela de olho para que os espíritos de Fedro contaminem, de maneira tão perniciosa, o sangue de Liceas. "Isto também não é espanto nenhum se consideramos pormenorizadamente quantas doenças se apanham, furtiva e inesperamente, por infeção: peste, icterícia, sarna, cólicas, etc." Desde que os espíritos tenham penetrado, quem os recebeu nunca mais terá descanso, ficando sujeito à irritação causada por eles. Idque petit corpus mens unde est saucia amore*". E podemos aperceber-nos de uma estranha extração dos espíritos, como quando o nariz do morto sangra se o seu assassino estiver presente.

Robert Burton (1577-1640), in Anatomia da Melancolia, Quetzal 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Espelhos

Encontraram-se na varanda. Ambas empenhadas na observação desse pedaço que falta à lua e que, na incompletude, a faz parecer quase humana. Pendurada, uma, pelos pés descalços no telhado, sentada, a outra, numa cadeira de balouço. Olharam-se demoradamente no silêncio confortável que é exclusivo dos velhos casais e dos eternos inimigos. A que se pendurava na noite foi a primeira a quebrar a harmonia:
- é cedo para ti. Esta lua ainda não é tua. 
A que se balouçava no escuro respondeu-lhe sem a olhar:
- é tarde para ti. Esta lua já não é tua. 
Então, por um momento, coexistiram pacificamente no mesmo espaço, a primeira na saudade da lua que foi, a segunda na expectativa da lua que será. 
E a lua brilhou, na noite, indiferente à cegueira de qualquer uma das duas.

domingo, 11 de setembro de 2016

Uma espécie de felicidade

Não sei dizer o que veio primeiro: Se as áridas noites que agora durmo abandonadas pelos sonhos que não me dou ao incómodo de sonhar; se a sucessão de dias que agora vivo despovoados de objetivos longínquos que não me dou ao incómodo de traçar. Sei que há uma espécie de felicidade nesta coerência de imbecilidades. Como se, por fim, tivesse chegado o momento em que já não preciso de mentir a mim própria. 
Por vezes, acordo durante a noite e observo o meu cão enquanto sonha. 
É uma criatura mais complexa do que eu. 

sábado, 10 de setembro de 2016

Cinzas

Choveram cinzas durante três dias. 
E agora que a estranha chuva finalmente parou, ainda nos vamos descobrindo, distraídos, a olhar para o céu ou para as costas da mão, à procura do pó que nos serviu de oráculo. 
Depois, retomamos a expressão grave, adequada a quem regressa da incineração dos anjos. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016