segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Café Society

É o mais bonito filme de Allen.
Tudo é exatamente como tudo tem de ser.

domingo, 30 de outubro de 2016

A sexcentésima segunda noite

Como Xerazade ao rei Schahriar, também eu, na sexcentésima segunda noite, haverei de contar-te a história que já é a tua. 
Serei gentil com as tuas fraquezas. Procurarei atenuá-las com rendas e cetins. 
Indignar-te-ás com os traços de cobardia e não te reconhecerás no liso espelho. 
Então, condenar-te-ás com uma dureza mil e uma vezes superior àquela de que eu seria capaz. 
Depois adormeceremos em paz, apenas para que, no dia seguinte, te deixe viver um outro por-do-sol. 

E tu, Cuca, o que fizeste com os sessenta minutos que os burocratas te ofereceram?

Trabalhei, já que ninguém explicou ao meu cão que era para dormir mais uma hora.

sábado, 29 de outubro de 2016

Seis graus de separação

It is the worst kind of yellowness to be so scared of yourself that you put blindfolds on rather than deal with yourself. To face ourselves - that's the hard thing. 
The imagination - that's God's gift, to make the act of self-examination bearable.

Paul, in, Six degrees of separation 

Rios de tinta

Veio ver-me num final de tarde de chuva.
Estava em pé em frente às grandes janelas a ver a água escorrer pela rua quando entraram para o anunciar. 
A minha mão desenhou três frases na folha branca que dobrei em quatro e pedi que lhe entregassem. 
Voltei a ocupar o meu lugar junto às janelas e fiquei por muito tempo, às vezes penso que para sempre, a ver a água escorrer pela rua.
Não voltei a aproximar-me das janelas, sobretudo, quando chove. 
E nunca saberei qual a exata formação de letras que foi a arma do mais terrível dos meus crimes. 

Registos

Mantenho o registo da existência própria em dois níveis antagónicos:
De um lado, numas asséticas agendas de capa preta onde informo um destinatário ignoto do detalhe da ocupação das horas públicas da minha vida. 
Do outro, neste espaço virtual onde informo um destinatário ignoto do detalhe da ocupação dos pensamentos privados da minha vida. 
No mais, destruo tudo:
- Comunicações, notas, fotografias e, sobretudo, o inútil rasto da memória.

Paraíso

Cheguei hoje ao Paraíso.
A empresa levou-me vários anos e custou-me penosas horas.
A verdade é que depois de passarmos pelo inferno e pelo purgatório já todos intuímos que o paraíso  é a parte sobrevalorizada de qualquer obra. Também assim na de Dante.
Antes de fechar o livro, ajeitei cuidadosamente o marcador. É provável que vá ficar ali imóvel durante um longo período de tempo.
Adinal, o paraíso é uma excelente sala de espera para melhores dias.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

É a vida


Máquina do tempo

Enquanto te aborrecias, na rua, com a vida que não é tua por direito, fiquei acordada, em casa, a viver num livro de Virgínia.
Lá pela madrugada encontrámo-nos numa insónia comum. 
Era quase manhã aqui, noite adiantada aí. 
Na confusão do sono, não saberia dizer se foram muitos anos ou um único serão.
Tento calcular a minha própria idade nas linhas da mão.
É possível que este serão tenha durado uma década.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Inquietação

Este cansaço azul que me espreita das unhas chegou antes do final do verão e ficará até à primavera. 
Somos velhos conhecidos. 
Cruzámo-nos nos espelhos de vários foyers. Cada um com a sua idêntica moldura barroca a condizer com uma carpete puída que foi, outrora, imponente. 
A este cansaço, que resiste ao sono e se apresenta vestido logo pela manhã, conheço-o de tantos outros teatros. 
E quando o encontro, sei-o, chegou o tempo de partir. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Enquanto a trovoada.

Lembro-me de um outro final de tarde igual ao de hoje.
Os raios consumiram a terra e, com a mesma avidez, a chuva lavou as cinzas. 
O chão desfez-se sob os nossos pés nus, deixando à vista, do outro lado do mundo, o mar indiferente.
Quando tudo terminou, caiu uma noite que foi a mais leve e a mais pura de todas as noites. 
Então, aqueles de entre nós a quem não os afligiam os pecados abriram as janelas das suas casas e deixaram entrar o ar puro.
Aos outros, havia-nos recebido o mar.
Navegámos durante muitos dias. 
Como penitência, primeiro, por vocação, depois. 
No esquecimento, por fim. 

O mundo reorganiza-se sob a violência de uma antiga tempestade. Esse medo que vem do chão.



domingo, 23 de outubro de 2016

Diário de Bordo

Hoje de manhã chegou a este navio um envelope negro com a marca da caveira desenhada a giz na face interior. Nos primeiros instantes, e dado o trauma dos últimos dias, ainda pensei que fosse a própria morte em pessoa que agora lhe tivesse dado para me dirigir intimações escritas. Só depois me lembrei que isso da caveira faz parte da mitologia e das insígnias da corporação a que pertenço. 
A carta era de Sparrow, o Jack.
Não sou a única capitã que se aborrece nos mares dos sul e que tem passado os dias debruçada no convés a tatuar a retina com a imagem do imenso, profundo, tédio. Desde o final do verão que não há coisa que me suscite interesse. Nem os planos de assalto ao próximo petroleiro, nem o mistério da construção das milongas, nem os quatro volumes da obra completa de Borges, nem o segredo da perfeita cozedura da massa de muffins e nem sequer, imagine-se, os meus dedos torcidos sobre as teclas do piano. 
Vagueio pelos corredores do navio fingindo-me ocupada em cada escotilha quando, na realidade, a única tarefa que me consome é este maldito tédio que me envenena as veias.
Sparrow queixa-se de uma doença parecida e informa-me que decidiu organizar um congresso de capitães piratas, lá para os lados das Caraíbas, onde poderemos todos entediar-nos em conjunto, fazendo-o melhor e mais bem feito. 
Tenho a vaga ideia de o ter tentar tentado assassinar na última vez em que esteve neste navio mas, ainda assim, escrevo-lhe imediatamente a aceitar a hospedagem. 
Agora estou a comprar biquínis num site online de uma loja da especialidade. 



sábado, 22 de outubro de 2016

O que importa é que nunca se nos acabe o jazz

Os deuses escolheram um dia feio, de cinzenta chuva e mediana temperatura para reencaixarem as rodas da vida na ferrugenta engrenagem do universo. 
A vida esteve parada e não foi por nenhuma daquelas razões que normalmente justificam a nossa vontade de suspender o tempo. 
Metade dos dias estou consciente da minha condição de habitante da caixa de música de deuses relapsos. Às vezes esquecem-se de lhe dar corda e o mecanismo deixa-me, inerte, dobrada sobre mim própria, a meio de um passo de dança inexequível. Na outra metade, o Olimpo é o meu jardim e a moeda que tenho na mão tem a exata dimensão da ranhura. É deixá-la cair e esperar que as notas se espalhem. 
Dentro ou fora da caixa o que importa é que nunca se nos acabe o jazz.
Os deuses, dizia, escolheram um dia feio para reencaixarem as rodas da vida na ferrugenta engrenagem do universo. 
Quando a máquina deu um solavanco e voltou a deslizar sobre os carris, o jazz foi-me devolvido e morreu bela a tarde que nasceu feia. 


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Deserto

Posso apenas escrever sobre um deserto de bíblica extensão. 
E nada mais além de areia, manhã alta, noite fria. 
Nenhuma rosa, nenhuma alba ou crepúsculo.
O deserto que deixei para trás e o deserto que tenho pela frente. 
A areia que poderia servir para medir as horas e os dias se os desertos não fossem lugares abandonados pelo tempo. 


terça-feira, 18 de outubro de 2016

domingo, 16 de outubro de 2016

A raposa busca a asa do dragão

Os cronistas referem que a raposa obteve o seu perdão e dedicou a sua lenta velhice ao contrabando de ópio. Deixou de ser a viúva; tomou um nome cuja tradução espanhola é Brilho da Verdadeira Instrução.
"Desde aquele dia", escreve um historiador, "os barcos recuperaram a paz. Os quatro mares e os rios inumeráveis foram seguros e felizes caminhos.
Os lavradores puderam vender as espadas e comprar bois para o arado dos seus campos. Fizeram sacrifícios, ofereceram preces nos cumes das montanhas e regozijaram-se durante os dias cantando atrás de biombos."

Jorge Luis Borges, História Universal da Infâmia (sobre a Viúva Ching, Pirata)

Baixas expetativas

Ao terceiro dia de cerelac e sumo de laranja natural e sem conseguir estar acordada por mais de cinco minutos seguidos, o meu corpo deu o primeiro sinal de vitória sobre a gripe: consegui beber um café. 

Amore


sábado, 15 de outubro de 2016

Geografia

Sentou-se ao meu lado, segurou a minha mão na sua e brincou com os meus dedos, afastando-os e aproximando-os. 
Enquanto eu esperava, contou-me ao ouvido as suas estórias de rir. Rimo-nos juntos e o tempo encolheu. A espera foi doce.
À noite, fez seu o pesadelo da minha febre para que eu pudesse dormir serenamente. 
Senti-o abraçar-me na primeira luz da manhã. 
Tudo isto conseguiu fazer sem sequer precisar sair do outro hemisfério. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Dylan - obra quase completa

http://www.azlyrics.com/d/dylan.html

É manter a esperança. Por este andar, para o ano entregam o Nobel a um blogger.



terça-feira, 11 de outubro de 2016

Da cobardia

Quando, por fim, também eu segui esse caminho, submetendo-me à promessa de não olhar para trás, nada me disseram sobre a deposição dos meus poderes de bruxa.
Transpus a montanha e renasci, obediente, durante um entardecer numa praia a sul.
Um de nós morreu, o outro sobreviveu.
A sobrevivência, e não a vida, é a justa recompensa pela cobardia.
Agora olho o imenso mar e o azul é-me tão indecifrável como a linguagem do vento e das aves e das pedras escuras. É verdade que me devolveram o cenário da noite. Mas os sonhos são de papel pintado. É dentro deles que me sei mais néscia. 
Trocava esta idílica praia que não sei ler pela clarividência de uma antiga montanha mal assombrada. 
O mar que não me molha, por um resto de céu que me respire. 
E se já não olho para trás, não é por temor aos deuses. 
Antes, por me saber cega. 


Duetos improváveis


Ausência

Ausência 

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos 
e sem sentido, iguais 
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
para que não veja a tua ausência, 
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda. 

Jorge Luis Borges, Obras Completas, I, Teorema

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Orçamento emocional

Se ao menos a lua estivesse cheia, ou viesse o siroco, encontraria um pretexto decente para vaguear de noite pela praia, desgrenhada e descalça, na minha camisa de dormir, branca e comprida, de louca. 
Como nada disso acontece, tenho de ficar dentro de casa, rasgando as unhas nas paredes de mate casca de ovo, sentada no cimo da estante de livros autorizados, vestindo a loucura com o meu mais sério twin set. 
O cão, que apreende todas as declinações da minha alma, traz-me a trela e pergunta-me se quero que me leve à rua.
Explico-lho que me sinto aprisionada nesta estação. É como se o verão tivesse apodrecido e o outono se recusasse a aparecer para o arrastar até ao ecoponto.

domingo, 9 de outubro de 2016

Lisboa

Tem múltiplas cambiantes, esta Lisboa onde coube o amanhecer cinzento por onde te vi partir mas cabe também a manhã de hoje: o rio de um azul que faz doer o olhar; um barco que parte e outro que chega; as árvores que em breve espalharão o ouro pelo chão. 
Cabe ainda a Lisboa que o espelho me trouxer. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Sindicato das Musas


Era uma péssima musa.
Odiava toda a obra manchada pela mais ténue sombra de inspiração de fonte própria.
Pelos seus artistas nunca soube sentir mais do que a zanga profunda.
Ansiou o silêncio dos poetas, a cegueira dos pintores, a surdez dos músicos.
Cada uma das maravilhas que lhe deram, sentiu-a como se um filho que lhe roubassem.
De pés presos ao pedestal, olhos vazios, sorriso de mármore, invejou-lhes os ossos, as veias e a carne.
Desprezou-os pela mentira e pelo logro.
Não se ama uma boneca de pedra.
Adorou o vento norte, a chuva grave, o gelo noturno.
Essa tríade libertadora de musas exaustas.







Viagens na terra dos outros




Pelo Henrique Bento Fialho, Aqui

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Não me dou à despedida


Nunca parto inteiramente.
Vivo de duas vontades: 
Uma, presa à corrente, 
A outra, que vai na nascente,
Fica para ter saudades. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Purgatório

Descobri um paralelismo evidente entre a leitura da Divina Comédia de Dante, que já leva cinco longos, lentos, anos, e a minha existência.  Às vezes penso que deveria acelerar o processo e sair do purgatório onde estou retida há cerca de um par de anos. Não era necessário nada tão dramático como acabar o livro. Talvez nem sequer seja aconselhável. Sabe-se lá o que me espera depois da última página. Bastava, ao menos, chegar ao Paradiso

Moinhos de vento

Todos os dias passo por aquela varanda enfeitada por coloridas túlipas de plástico que giram ao ritmo do vento e todos os dias penso que há, que tem de haver, algo de excecionalmente mágico numa alma que escolhe enfeitar assim a varanda. 

sábado, 1 de outubro de 2016

Contrariedades

Eu, que toda a minha vida tive imensa boa sorte, tenho aquela teoria que um dia vives feliz e satisfeito no olimpo e aquilo que é essencial está tão solidamente construído debaixo dos teus pés que nem sequer te ocorre olhar para baixo e, de repente, uma inusitada contrariedade terrena; um insignificante grão de areia; uma inesperada folha que cai da árvore antes do seu tempo, inaugura toda uma existência de misérias e sortes malvadas que nunca antes sequer configuraste como possível que te pudessem acontecer a ti.
É por isso, e apenas por isso, que não consigo deixar de olhar com apreensão supersticiosa para aquela mensagem a que não me responderam. 


O sol quente de outubro

Durante a madrugada, enviaram-me, do outro lado do mundo, o November Rain, dos Guns N' Roses.
É um facto notório que é difícil segurar uma vela debaixo da fria chuva de novembro. 
Recebo-a, acesa, a meio desta manhã de sol quente do primeiro dia de outubro. 
É uma vela especial. Tem a magia das chamas que muitos invernos não souberam apagar.